Publicado originalmente em 1 de dezembro de 2002, no jornal O Estado de S.Paulo
Um professor achou que estava impondo um castigo ao amazonense Milton Hatoum, autor de Dois Irmãos (Companhia das Letras); um outro impôs um desafio a um aluno, Deonísio da Silva (Guerreiros do Campo, Mandarim), catarinense, que tinha a vã pretensão de conhecer todas as palavras. Assim dois escritores brasileiros contemporâneos descobriram Os Sertões. Também o baiano Antonio Torres (Essa Terra, Record) o conheceu no tempo de escola. Mas nem sempre a obra-prima de Euclides da Cunha chegou a eles nas salas de aula. João Ubaldo Ribeiro, autor de Viva o Povo Brasileiro (Nova Fronteira), que nasceu na Bahia e passou a infância em Sergipe, afirma que o leu aos dez anos, já incutido da deferência de muito ouvir falar do livro na casa dos pais. Luiz Antonio de Assis Brasil, o gaúcho autor de Breviário das Terras do Brasil (LP&M), já passara dos 30 anos quando, por obrigação profissional, precisou ler o livro e se maravilhou. Elaboramos um pequeno questionário sobre o livro e o submetemos a estes cinco escritores brasileiros. Suas sensações, opiniões e recomendações sobre o livro centenário podem ser conhecidas nesta página. Nela, eles também explicam por que acham que Os Sertões continua sendo uma obra fundamental para entendera literatura, o Brasil e os brasileiros. Rachel de Queiroz, de O Quinze e Memorial de Maria Moura, entre outros, preferiu escrever um breve depoimento sobre a obra.
AS PERGUNTAS
1. Quando e como o sr. leu Os Sertões? Qual foi a sua primeira sensação diante do livro?
2. Em algum momento, o sr. se sentiu influenciado por ele?
3. O sr. acha que Os Sertões ainda ajuda pensar o País e a literatura brasileira?
4. O sr. recomenda a leitura do livro? Por quê? Qual é, na sua opinião, o melhor caminho para chegar até ele?
5. Tem um trecho preferido? Qual? Por quê?
AS RESPOSTAS
Milton Hatoum
1. Em 1967, li trechos do capítulo “Últimos Dias”, no Ginásio Amazonense Pedro II. A leitura e o fichamento foram uma punição aos alunos, por causa de um ato de vandalismo da turma da pesada. Agradeço até hoje a esse severo professor. Ele queria que a gente sofresse com a leitura; no começo, não entendi muita coisa, percebi que estava diante de um texto dificílimo e complicado. Mas, com o passar do tempo, as dificuldades se tornaram um prazer.
2. De alguma maneira, um escritor é sempre influenciado por um grande livro. Não me refiro ao estilo euclidiano, que é arrevesado, pomposo demais. Tem algo de escultural, como notou Gilberto Freyre. Mas há outros textos valiosos de Euclides. Por exemplo, no livro À Margem da História (1909), ele foi um dos primeiros a denunciar com contundência as condições de trabalho dos seringueiros, questões sobre o meio ambiente, a brutalidade contra os índios da Amazônia. Ele intuiu questões e apontou problemas que ainda estão aí; percebeu que os bárbaros eram, na verdade, os “civilizados” da nossa República. Esse foi o Euclides que mais me influenciou.
3. Os Sertões nos ajuda a perceber as contradições profundas da sociedade brasileira. Até hoje o livro causa vários impactos: o dos conflitos sociais e das diferenças de culturas, a mistura de gêneros numa mesma obra e, sobretudo, o estilo abarrocado, a linguagem euclidiana. Tudo isso ainda é surpreendente e espantoso. Penso que Guimarães Rosa deve alguma coisa, senão muita, a Os Sertões.
4. É um livro seminal sobre o Brasil. Um desses momentos raros de uma cultura. Quando um jovem lê a maçaroca que é Os Sertões, se depara com um Brasil que herdou as terríveis desigualdades daquela época. Nesse sentido, ainda é muito atual. Tem muita coisa anacrônica e ideologicamente retrógrada, como as teorias racialistas, o determinismo climático, etc. E isso deve ser dito. Mas o gênio verbal é muito mais importante que o ingênuo e fervoroso republicano.
5. Gosto de muita coisa nesse livro. Cada página é um estrondo. As últimas são memoráveis. Por exemplo, a rendição do Beatinho, “um consumado diplomata”, erguendo o longo cajado semelhante a uma batuta, como se fosse um maestro dos desvalidos. Ou então o primeiro parágrafo do trecho intitulado “A Dinamite”, em que o trágico e o sublime convergem para a destruição de um ideal: “– sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros – a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte…”
Antonio Torres
1. Li Os Sertões pela primeira vez quando estudava no Ginásio de Alagoinhas (BA). De cara, me entusiasmei com a “Nota Preliminar” de Euclides da Cunha, na qual dizia que a campanha de Canudos havia sido um crime. Mas achei chata a primeira parte do livro (“A Terra”) e pulei para a segunda, “O Homem”. E aí foi um deslumbramento.
2. É possível que haja ressonância dele no meu romance Essa Terra, em que há breves referências à Guerra de Canudos. No sertão onde nasci, Antônio Conselheiro tornou-se uma figura mitológica.
3. Sim, Os Sertões é um dos pilares do pensamento e da literatura do nosso País, pelo seu manancial de informações sobre a paisagem física e humana de um Brasil profundo. Os outros são: Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, Macunaíma, de Mário de Andrade, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
4. Em 1994, na Feira do Livro de Frankfurt, a editora Michi Strausfeld, da Suhrkamp, exibia a edição alemã de Os Sertões dizendo: “É o livro dos livros.” Precisa dizer mais? Para mim, o melhor caminho para chegar até ele é indo direto a uma edição recente da Francisco Alves, com texto estabelecido por Anamaria Skinner.
5. O meu trecho preferido é o 3º capítulo da segunda parte, que descreve o sertanejo, “antes de tudo um forte”, porém “desgracioso, desengonçado, torto”. É impressionante a agudeza com que Euclides observou a postura do homem do sertão em todos os seus movimentos ou parado. É de cair de cócoras.
João Ubaldo Ribeiro
1. Deve ter sido há cerca de 50 anos, quando eu tinha uns dez anos. Peguei o volume, em que meu pai e as antologias escolares falavam muito, na biblioteca de meu pai. Li com reverência que já tinham me incutido.
2. De alguma forma, devo ter sido, mas não sei precisar como.
3. Acho um livro básico em qualquer bibliografia, por mínima que seja, sobre o Brasil.
4. Recomendo enfaticamente.
5. Meu trecho preferido é a abertura mesmo, por causa da imponente descrição da terra.
NULL
NULL
Luiz Antonio de Assis Brasil
1. Li-o muito tarde, lá perto dos 30 anos, e por uma necessidade profissional. A sensação foi de assombro. Não esperava encontrar um autor com essa força dramática. Mas foi bom haver lido Os Sertões já na maturidade; antes, dificilmente entenderia toda a sua complexidade.
2. Não; o estilo era bem diferente do que eu gostava de praticar. Mas confesso que me perturbou aquela síntese entre crônica, história, romance e tratado sociológico. Então era possível escrever daquela forma? Hoje, inclusive, percebo que Euclides era um pós-moderno “avant la lettre”.
3. Sim para ambos os casos. Os problemas apontados por Euclides ainda permanecem, e talvez mais graves, e nosso desconhecimento do “Hinterland” é patético. Por outro lado, a Literatura Brasileira passa, necessariamente, por Os Sertões
4. Sim, mas tenho o cuidado de escolher a pessoa. Não é para qualquer um: é preciso ter sensibilidade social e muito conhecimento sobre a nacionalidade. E, claro, uma carga considerável de leituras prévias para que a fruição da obra seja completa. E particularmente recomendo Os Sertões porque aqui no Rio Grande do Sul tivemos, em 1874, o episódio dos Muckers, que é uma pré-visão estarrecedora do que viria a ser Canudos.
5. É o dos últimos dias do Conselheiro. É uma peça de magnífico drama, essencialidade vocabular e impacto (inclusive visual). É o ponto culminante da obra, que sempre me faz voltar a ela. Há, em todo o trecho, um clima sombriamente mágico.
Deonísio da Silva
1. Li Os Sertões pela primeira vez no curso ginasial, no seminário. Meu professor de português, um padre, que dizia que eu era muito bom em vocabulário. Não havia palavra da qual não soubesse sinônimos e variantes. Os Sertões foi minha primeira derrota. A minha primeira sensação foi de que eu desconhecia a língua portuguesa, que Euclides da Cunha deixara uma bomba de efeito retardado que somente então me atingia; Perguntei a um colega, Wilson Volpato, hoje advogado em Porto Alegre, que sabia tudo de literatura, e ele me disse: “Livro bom é assim, acrescenta o que você não sabe.” Outro dia me consolei: um brasilianista dizia em nota de pé de página que caatinga é um cheiro estranho que existe no sertão. E ele é PhD em não sei o quê!
2. Acho que sim, sobretudo quando escrevi Avante Soldados, Para Trás, embora as influências de um escritor sobre outro sejam inconscientes e ali o único que aparece explicitamente me influenciando seja Visconde de Taunay. Euclides terá passado a escritores que têm ligações perigosas e vinculações de fogo com a sociedade em que vivem, como acho ser o meu caso, sérias, complexas e por vezes confusas preocupações com o povo brasileiro, com seu destino, com seus impasses, coma crueldade inaudita com que nossas elites o golpeiam frequentemente.
3. Sim, mais de um século depois daqueles eventos, a leitura de Os Sertões nos ajuda a entender o país, seu povo, sua luta. Considero Euclides da Cunha meu professor, embora eu tenha começado a ler Os Sertões como um romance. Depois foi que percebi que era tudo verdade, que tudo tinha acontecido, que era um relato de um jornalista. E ele continua um exemplo para os jornalistas que não se contentam como espaço exíguo do jornal e buscam no livro um novo território para sua expressão.
4. Quem não o leu, ainda, não completou sua alfabetização. Hoje há grandes vias de acesso ao livro. São cerca de 400 edições no mundo todo. No Brasil, há vários especialistas. Tenho, porém, para mim que o melhor caminho é tomar o touro pelos chifres, o prato quente de mingau pelas beiradas, seja qual fora metáfora, ninguém substitui o abraço direto entre escritor e leitor. Primeiro o livro, depois os comentaristas.
5. “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. (…) Caiu o arraial no dia 5. No dia 6 acabaram de o destruir, desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.
Rachel de Queiroz
A pobreza do sertão continua, passados cem anos
Autora de um dos mais importantes romances regionalistas brasileiros, O Quinze, e de uma extensa obra enraizada no Nordeste, a escritora cearense Rachel de Queiroz afirma que “Os Sertões foi o primeiro livro que trouxe à consciência do país uma imagem do sertão”.
Em vez de responder às perguntas propostas, ela preferiu conceder um depoimento sobre o livro, transcrito abaixo.
Os Sertões foi o primeiro livro que trouxe à consciência do país uma imagem do sertão do Nordeste.
É um livro clássico, sobre o qual muitos falam; poucos o leram. É d'Os Sertões o dito que mais ficou sobre o caráter do homem do sertão: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Euclides da Cunha representava o que havia de mais avançado no Brasil, do ponto de pensamento, que era o positivismo das academias militares de engenharia. Ele acreditava que a campanha de Canudos era um avanço das forças modernas sobre o atraso, messiânico e monarquista, de um bando de fanáticos. Grande é a sua decepção, revelada ao longo do livro, ao constatar que as forças que representariam o Brasil moderno, as colunas militares que avançaram contra Canudos, eram um ajuntamento desorganizado e sem método, não muito diferente dos jagunços que combatiam. Por isso, Canudos é como uma viagem à prática, do acadêmico de manuais.
Os Sertões é uma reportagem científica da terra do sertão, uma descrição do caráter do sertanejo, de suas virtudes, de sua miséria. A pobreza do sertão continua, passados cem anos da obra, a desafiar as mentes dos planejadores científicos do Brasil.