Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, 3 de novembro de 2002.
Cem anos depois da publicação de Os Sertões, uma nova versão da Guerra de Canudos é conhecida. Escrita durante os combates da última expedição militar enviada para destruir o povoado, Canudos, História em Versos (Hedra/Edufscar/Imprensa Oficial, 344 págs.) é assinada pelo sergipano Manuel Pedro das Dores Bombinho. A obra, de cuja existência conheciam apenas os especialistas no conflito – e que teve alguns dos quartetos transcritos por Nertan Macedo, autor de “Antonio Conselheiro (A Morte em Vida do Beato de Canudos)” –, nunca havia ganhado uma edição completa.
Na verdade, ela quase se perdeu totalmente: seu original, que pertencia à Biblioteca Pública Estadual de Sergipe, foi furtado e não há nenhuma pista de onde possa estar. A crítica literária Walnice Nogueira Galvão, autora de uma edição crítica de Os Sertões, escreve na contracapa de Canudos, História em Versos que o livro “resgata para a posteridade um documento inestimável”.
Num certo sentido, ele traz uma nova visão da guerra. Até agora, as versões conhecidas do conflito eram de autoria de brasileiros do “litoral” – caso de Euclides, de militares que combateram e também do jornalista Manoel Benício, enviado ao campo de batalha pelo Jornal do Commercio e autor de O Rei dos Jagunços.
Canudos, História em Versos, assinala o historiador Marco Antonio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos (e dono de uma das cópias incompletas que, reunidas, permitiram a edição), é a única obra de um sertanejo sobre a Guerra — na época, Bombinho, nascido em Propriá (SE), vivia em Simão Dias (SE), depois de ter passado por Bom Conselho (BA). “Ela mostra como as notícias que saíam do Rio chegavam até lá e revela também muito das contradições vividas pelos habitantes da região”.
Não se sabe se Bombinho, que morreu aos 81 anos (por volta da década de 1940), em Ilhéus (BA), leu Os Sertões, um livro cujo lançamento obteve enorme repercussão em 1902. Um outro aspecto, secundário na compreensão das duas obras, mas que também revela uma visão de mundo diferente, é que Bombinho se mostra capaz de encontrar, no sertão, uma “moça destemida”: “Era bela e mais que bela/ Esta jovem do sertão/ Tinha graça e mui encantos/ Mataria qualquer coração” — um contraste claro com a visão de Euclides, que chega, no máximo, a um elogio tortuoso da mulher sertaneja: “As mulheres eram, na maioria, repugnantes. Fisionomias ríspidas, de viragos, de olhos zanagas e maus. Destacava-se, porém, uma. A miséria escavara-lhe a face, sem destruir a mocidade. Uma beleza olímpica ressurgia na moldura firme de um perfil judaico, perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontando duramente no rosto emagrecido e pálido, aclarado de olhos grandes e negros, cheios de tristeza soberana e profunda”.
“O poema, com seus 5.984 versos, traz informações novas sobre a história de Canudos”, diz Villa, autor também de Canudos – O Povo da Terra (Ática). “Por exemplo, indica o nome dos principais combatentes conselheiristas, talvez porque Bombinho inclusive os conhecesse”. Villa destaca o fato de o poema mostrar que, desde o mês de julho de 1897, eram realizadas degolas de prisioneiros pelo Exército republicano — ordenadas pelo general Cláudio do Amaral Savaget, que comandava a coluna saída de Sergipe.
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Livro resgata versão sertaneja do massacre dos conselheiristas pelas tropas republicanas
A degola é talvez o mais forte episódio narrado por Euclides da Cunha em Os Sertões, certamente um dos motivos para considerar um crime o acontecido em Canudos. Mas Euclides a descreve apenas mais tarde, no fim de setembro de 1897, mais perto do fim da guerra, sob o comando do general Artur Oscar.
O poema também documenta outros fatos, como o enterro de vários conselheristas pelo fazendeiro Ângelo dos Reis, algo que só se sabia por meio de relatos orais. E, segundo Villa, é possível confiar na sua narrativa, pois muito do que ele descreve se confirma por meio de outros documentos sobre as batalhas.
Do ponto de vista literário, o poema, para Villa, lembra a forma de O Uraguai, de Basílio da Gama, por sua extensão. Mas pode ser considerado ainda uma espécie de “protocordel”. Não se sabe, entretanto, o que motivou Bombinho a escrevê-lo, ainda no calor dos acontecimentos.
“O que chama a atenção do leitor não é apenas o esforço poético – afinal, são quase seis mil versos –, mas a adoção de uma forma que à época não era a dominante na poesia culta brasileira”, escreve Villa na introdução. Bombinho usa quartetos e oitavas, sem uma métrica rigorosa, mas com rimas evidentes. Como ele conhecia música, é possível que cantasse esses versos – aproximando-o da tradição épica.
Do ponto de vista da narrativa, Bombinho não pretendia, ao contrário de Euclides, denunciar um crime. Mas acaba por descrever uma trajetória semelhante à percorrida pelo autor de Os Sertões: está do lado dos republicanos, mas critica os excessos do Exército no final de sua história em versos: “Crueldade inaudita e monstruosa/ Foi aquela que ali se viu então/ Os jagunços eram todos degolados/ Não faziam parte da Nação.” E prossegue: “Que os jagunços procedessem cruelmente/ Para eles devia haver perdão/ O fanatismo predominava/ Por tal motivo mereciam proteção”.
Nesse momento, nas páginas derradeiras do livro, os partidários de Antônio Conselheiro recebem, inclusive, um tratamento antes reservado apenas aos militares que foram combatê-los. “Uma mulher separada do marido/ Prevendo que ele era degolado/ Disse como heroína sem temer/ Executem a mim sem ter cuidado”. A personagem não para aí: “Sou conselheirista e quero sim/ Morrer sem ser republicana/ Degolem, não é vossa missão?/ Degolem a uma heroica baiana”.