Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 20 de outubro de 2002.
A edição 54 da Revista USP traz um dossiê sobre Os Sertões, obra do jornalista e escritor Euclides da Cunha que completa cem anos de publicação em dezembro. São oito os artigos publicados pela revista, ocupando aproximadamente metade da edição, que trata desde questões relativas à construção da obra até o trabalho do também repórter de guerra Manuel Benício, que cobriu o conflito na mesma época que Euclides — o autor de Os Sertões como enviado especial do Estado, Benício, produzindo notícias e relatos para o Jornal do Comércio, do Recife.
O texto que abre o dossiê, assinado por Leopoldo M. Bernucci, autor de uma edição anotada de Os Sertões lançada neste ano, discute os “pressupostos historiográficos” do livro que narra o conflito entre as forças republicanas e os sertanejos de Canudos. Para Bernucci, “no desenvolvimento da historiografia em Portugal e no Brasil, muito pouco se conhece até os dias de hoje sobre os métodos adotados pelos historiadores ou tratadistas no discurso historiográfico, ao contrário do que ocorreu em outras línguas”.
Bernucci procura, então, apontar alguns aspectos da organização de Os Sertões, o que chama de “desenho metodológico” da obra, especialmente de sua filiação aos esquemas sugeridos pelo autor bávaro Carl Friedrich P. von Martius, autor de uma dissertação intitulada Como se Deve Escrever a História do Brasil, publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1844. “Essa preocupação com os componentes que formam a matéria narrativa torna-se, para um escritor como Euclides, motivo também de conscientização discursiva; isto é, de exercitar com todo o zelo necessário o equilíbrio dos assuntos ali tratados.”
O artigo seguinte é do professor de teoria literária da USP Roberto Ventura, morto num acidente de carro em agosto. Ventura, no texto “Euclides da Cunha no Vale da Morte”, discute as contradições do escritor e alguns de seus modelos literários, além de aproximar seu trabalho com o de Joseph Conrad, polonês que publicou, também em 1902, Coração das Trevas. “A visão do Inferno, que Euclides evocou nas reportagens a partir da referência a Dante, se faz presente em Os Sertões junto com o seu reverso, a busca do Paraíso. Citou os poemas populares sobre a Guerra de Canudos e interpretou as profecias do fim do mundo que atribuiu a Antônio Conselheiro, de modo a incorporar a seu relato a visão de mundo dos sertanejos.”
Ventura aponta a distância que havia entre o Conselheiro pintado por Euclides e os sermões pelo líder de Canudos – textos a que o escritor não teve acesso quando produziu seu livro. Tal questão também é lembrada por Walnice Nogueira Gaivão, em “Tributo a José Calasans”, historiador que morreu em 2001. Walnice, também professora do departamento de teoria literária da USP, organizou, com Fernando da Rocha Peres, o Breviário de Antonio Conselheiro (UFBA), lançado neste ano, com esses sermões.
A Revista USP traz ainda textos de Nicolau Sevcenko, Francisco de Assis Barbosa, Francisco Costa e Sílvia Maria Azevedo. Silvia, professora da Unesp de Assis, narra as dificuldades de Manuel Benício com a resistência dos militares em permitir a divulgação de informações comprometedoras e com os problemas naturais de uma cobertura de guerra. “O repórter não se importou com o apuro formal de suas cartas, o que vai marcar a correspondência de Euclides da Cunha. Quando se é obrigado a escrever ‘deitado no chão debaixo da barraca’, quando é preciso adivinhar o que está escrito porque palavras foram omitidas, quando
não há tempo para reler as cartas imediatamente enviadas ao jornal, compreende-se que a situação não era propícia a ‘estas futilidades de estilo gráfico e leitura bonita’”, escreve ela, citando trechos de reportagens de Benício, autor do livro O Rei dos Jagunços.
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Antônio Conselheiro, líder religioso de Canudos, foi morto em 1897.
Minas
O SL – Suplemento Literário da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, em sua edição 86, traz um artigo do crítico Valentim Facioli sobre a edição de Os Sertões preparada por Bernucci. Valentim, autor de vários trabalhos sobre Euclides, resiste a ver no livro uma obra “vingadora”, capaz de pôr a limpo a violência cometida contra os sertanejos no final do século 19. “Afinal, suas premissas principais constituem alienações científicas (revestidas de pretensões científicas modernas), as quais o ‘espírito conciliador’ das nossas elites tende a embaçar, promovendo a obra num movimento que parece cheirar a ‘mea-culpa’, purgação de crimes irremissíveis” – cometidos ainda hoje, segundo ele, “reduplicados em formas e caracteres variadíssimos por todo o País”.
“Euclides tenta mobilizar um saber que ele mesmo não tinha, e nem sequer existia para ninguém, porque as pesquisas mais comezinhas ainda estavam por ser realizadas e pensadas décadas depois”, segue Facioli, para quem a busca de monumentalidade pelo autor “era também marca do atraso relativo das condições de produção intelectual do país, da pouca especialização das atividades intelectuais e, para brincar com Euclides, da deplorável situação mental em que jazíamos, o país inteiro e não apenas os sertanejos de Canudos, como ele pretendeu”.