Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 20 de julho de 2003.
Em fevereiro de 2002, o professor de teoria literária da USP Roberto Ventura concedeu uma longa entrevista em que falava de seu mais importante projeto, uma biografia do escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, uma pesquisa que iniciara dez anos antes.
Se tudo corresse de acordo com o que planejava, em 2 de dezembro de 2002, data em que se celebraria o centenário de publicação de sua principal obra, o livro estaria nas livrarias. Em agosto, contudo, após participar de um encontro de estudos que ocorre anualmente em São José do Rio Pardo (SP), Ventura sofreu um acidente fatal, na estrada a caminho para São Paulo.
A biografia de Euclides pretendida por Ventura ficou inconclusa. Na verdade, o que restou nos seus computadores foi um “guia sumário”, nas palavras de um dos organizadores da obra, o jornalista Mario Cesar Carvalho (que dividiu a tarefa com outro amigo de Ventura, José Carlos Barreto de Santana).
Ventura dissera que não faria um relato apenas factual, combinando interpretações literárias e psicanalíticas das obras e do biografado. Também deixou claro que pretendia recorrer a uma metáfora fundadora de estudos biográficos, o que não chegou a realizar. “Recorrer a Plutarco: princípio das vidas paralelas: Euclides e Conselheiro como vidas paralelas e invertidas, Conselheiro como personagem criado por Euclides, que aponta em sua vida os componentes trágicos e arcaicos que acabaram se projetando sobre sua vida”, escreveu ele numa das notas preparatórias para a biografia (embora ele não tivesse usado nada que lembrasse a expressão durante a entrevista, a sugeriu fartamente — e ela foi publicada com o título “As vidas paralelas de Euclides e Conselheiro”).
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O “guia sumário” de Ventura chegou, em julho de 2003, às livrarias, publicado pela Companhia das Letras. Embora aparentemente o texto de Euclides da Cunha — Um Esboço Biográfico tenha ficado aquém do que Ventura planejava fazer, o resultado, em si, justifica sua edição. O que restou nos arquivos de Ventura resultou num livro que, ao mesmo tempo, serve a especialistas, por condensar informações importantes, e a leitores comuns, por narrar de maneira clara a vida de Euclides.
A ordem é cronológica e, como alerta uma nota dos editores, “existe certa desigualdade entre os capítulos e subcapítulos”: “Alguns seriam mesmo definitivos e são mais analíticos, a exemplo dos que recriam, sob a ótica do biografado, muitos períodos da história brasileira, como a proclamação da República, o encilhamento, a repressão política do primeiro governo republicano e a Revolta da Armada. Outros estariam ainda em fase de desenvolvimento, como, por exemplo, o que trata do drama familiar do escritor.” De fato, a morte do escritor, num duelo com Dilermando de Assis, bem como sua difícil relação com Ana, é um terreno espinhoso, pois os familiares de ambos ainda hoje empunham diferentes versões da história, que permaneceram pouco exploradas.
Intencionalmente ou não, Ventura acabou realçando a importância que a vida militar teve na inadaptação de Euclides, nas várias atividades que buscou desenvolver. Desde seu protesto, quando cadete, diante do ministro da Guerra do Império, Tomás Coelho, no fim de 1888, que o leva a ser afastado do Exército por suposta “inaptidão física”, até a uma interpretação de que ele não descreveu os massacres promovidos pelas forças republicanas em Canudos nos textos que enviou como correspondente de O Estado de S.Paulo à guerra, por causa de um possível desconforto por ter, novamente, deixado a corporação pouco antes, a vida militar e a militância política sua e de seu sogro, Solon Sampaio Ribeiro, estão no centro das decisões e relutâncias do escritor.
Mesmo a análise de Os Sertões não deixa de ser feita. Depois de lembrar a importância do filósofo Hippolyte Taine, formulador da teoria naturalista da história, na organização da obra (dividida em três partes: “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”), Ventura escreve, por exemplo: “Mas superou tal determinismo geográfico, ao transformar a natureza em personagem dramático, que projeta imagens e sombras sobre a narrativa (…). Criou, em Os Sertões, uma tensão constante entre a perspectiva naturalista, que concebe a história a partir do determinismo do meio e da raça, e a construção literária, marcada pelo tom antiépico e pelo fatalismo trágico. Tomou a natureza dos sertões como cenário trágico, cuja vegetação, com galhos secos e contorcidos, permitia antever as cabeças degoladas dos sertanejos.”