Publicado originalmente em 14 de agosto de 2002, no jornal O Estado de S.Paulo.
“Os homens criam deuses e depois se tornam dependentes desses deuses”. Diretora da unidade da Universidade Paulista em São José do Rio Pardo, interior de São Paulo, a professora de História Cármen Trovatto cita o sociólogo francês Émile Durkheim (As Formas Elementares de Vida Religiosa) para explicar a relação da cidade com a obra e a vida de Euclides da Cunha.
Cármen lançou um livro sobre essa relação: chama-se A Tradição Euclidiana – Uma Ponte entre a História e a Memória (ed. Arte e Ciência). O título faz referência clara à ponte construída na cidade sob o comando do engenheiro Euclides entre 1898 e 1901, época em que ele também escreveu a maior parte de sua obra-prima, Os Sertões.
“As semanas euclidianas são mais do que uma festa, são uma ritualização da história; o culto à figura de Euclides é quase uma religião”, afirma ela. Um dos resultados disso foi a transformação da cidade num local necessário para o estudo da obra do escritor. “Não se vai a Roma sem se ver o papa; não se estuda Euclides sem passar por São José do Rio Pardo.”
O dia-a-dia da cidade está marcado pelo mito. Uma escola leva seu nome, a ponte que construiu faz parte do emblema da cidade (e também se chama Euclides da Cunha), sempre que possível ele é lembrado. Também faz parte desse universo a presença constante de Francisco Escobar, amigo de Euclides e intendente (prefeito) da cidade na época da construção da ponte.
Escobar dá nome, por exemplo, à praça em que estão depositados os restos mortais do escritor e à cabana de zinco localizada à beira do Rio Pardo. O livro de Cármen faz uma etnografia dos rituais da semana, que incluem desfiles, maratonas intelectuais, disputas esportivas e discursos no dia de sua morte, 15 de agosto, feriado em São José do Rio Pardo.
“Procuro comparar as primeiras décadas da semana – nos anos 1940 e 1950 – com as semanas mais recentes.” Para ela, a semana é um “fato social total”, conceito que deriva da sociologia e da antropologia, especialmente de Durkheim e Marcel Mauss. A historiadora é, também, uma “observadora participante”: desde os anos 1970, dá aulas durante o evento e já fez parte, inclusive, da direção da Casa Euclidiana, responsável pela organização anual da semana. Na sua infância, também foi uma “maratonista” (como são chamados os estudantes que participam ativamente da semana, numa espécie de gincana).
Desfiles
“Nessas celebrações, as pessoas se mostram do jeito que querem ser vistas: por isso, o desfile de abertura lembra uma parada militar, mas também um carnaval, com carros alegóricos, fantasias, etc.”, comenta.
“Cada solenidade possui um ritual próprio, com objetivos, atores e espectadores especiais; o clima de festa prevalece durante toda a semana, período em que a cidade suspende seu cotidiano, vivendo momentos especiais”, completa no livro, tendo como referência o antropólogo Roberto DaMatta, autor de Carnavais, Malandros e Heróis.
Daí a presença de atividades não relacionadas diretamente à literatura, como campeonatos de judô e futebol de salão durante o evento. “A tradição comemorativa é a expressão de como a cidade quer ser vista, quer que os outros a vejam e nela acreditam”, escreve Cármen, para quem a “tradição identifica a cidade”.
Reprodução
Desfile durante semana euclidiana
Tradição
Cármen foi orientada no mestrado por Regina Abreu, professora da UniRio, autora de O Enigma de Os Sertões. Para Regina, “uma tradição que se mantém por longos anos, sobrevivendo a toda sorte de intempéries, (…) não faz parte do passado, mas sim do momento presente. Ela integra o que de mais vivo existe numa sociedade: os valores culturais de seu povo.”
A autora de A Tradição Euclidiana – Uma Ponte entre a História e a Memória acaba por ser, num certo sentido, representante dos dois tipos de pesquisadores da obra de Euclides, que se encontram todos os anos em São José do Rio Pardo: os euclidianos históricos, que se consideram legítimos representantes dos fundadores do movimento, e os professores universitários que estudam sua obra na academia.
Um dos nomes que foram citados por Cármen no trabalho é o do professor Leopoldo Bernucci, da Universidade do Texas e autor de uma edição anotada de Os Sertões. Frequentador da Semana Euclidiana, ele afirmou em entrevista recente que o estudo de Euclides na academia prosperou a partir dos anos 1980, sendo antes pouco analisado nas universidades, “embora tivesse um público bastante fiel de estudiosos, mesmo que não fossem acadêmicos”.
Esses não acadêmicos foram, acredita ela, responsáveis pela manutenção da tradição em torno de Euclides. “Eles sistematizaram a semana, organizaram a maratona, deram corpo ao evento; em parte, isso se deve a Oswaldo Galotti, que não deixava ninguém de fora do encontro”.