Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 10 de agosto de 2002.
Até então, a edição das obras completas de Euclides da Cunha (1866-1909), publicada pela Nova Aguilar, contava com 37 poemas. Mas o número de poesias conhecidas do autor de Os Sertões deve, ainda no ano de 2002, crescer em quase uma centena, chegando a 134. A edição de todos esses poemas é resultado do trabalho de três pesquisadores: Leopoldo Bernucci, que dirige o Departamento de Literatura Brasileira na Universidade de Austin (Texas) e que lançou neste ano uma versão anotada de Os Sertões, Francisco Foot Hardman, professor do departamento de Teoria Literária da Unicamp, e Frederic Amory, Amory, professor da Universidade de São Francisco (Califórnia).
Há três anos, eles trabalham no projeto. A aproximação se deu em São José do Rio Pardo, quando os três se viram procurando pela edição de Ondas, caderno de poesias produzido por Euclides no fim da adolescência e nunca publicado na íntegra. Hardman sugeriu, então, que, além do caderno, seria possível e interessante fazer um levantamento da poesia que Euclides publicou, ao longo da vida, em jornais e revistas, e também deixada em manuscritos guardados em diversos arquivos do país, inclusive em uma coleção particular.
As pesquisas foram realizadas, especialmente, nos papéis da Biblioteca Nacional, da Academia Brasileira de Letras e do Grêmio Euclides da Cunha. Neste dia 10 de agosto de 2002, às 15 horas, Hardman e Bernucci participam, em São José do Rio Pardo, de uma mesa-redonda com o professor da Universidade de São Paulo Valentim Facioli, sobre a poesia reunida de Euclides da Cunha.
O evento faz parte da Semana Euclidiana, que ocorre todos os anos na cidade em que o escritor escreveu a maior parte de Os Sertões e que segue com sua programação até quinta-feira.
“Os poemas de Euclides não são uma mera curiosidade”, diz Hardman. “Ele, como muitos escritores brasileiros, padece do mal da obra-prima que ofusca o resto de sua obra.” Hardman ainda completa que “só no Brasil um autor canônico como Euclides, talvez o mais canônico da literatura brasileira, depois de quase um século de sua morte, ainda tem boa parte da obra não editada”.
A poesia de Euclides está profundamente ligada ao romantismo. Entre os autores brasileiros citados, estão Castro Alves, Fagundes Varella e Gonçalves Dias. O francês Victor Hugo também é uma referência obrigatória para ele (uma filiação que nunca abandonará). Um dos poemas do caderno Ondas, por exemplo, intitula-se “No Túmulo de um Inglês” e termina assim: “És bens feliz mylord – assim antes eu fora!../ Tu tens a calma eterna, a solidão sonora/ E só não tens – feliz – teu coração…”.
Raphael Henrique Figueira/Wikicommons
Casa em S. J. do Rio Preto onde Euclides escreveu ‘Os Sertões’; autor também fez poesias
O caderno Ondas contribui com a maior parte dos poemas. Da sua feitura até hoje, é possível que algumas poucas páginas tenham se perdido. O certo é que ele tem, atualmente, 76 poemas, mais 12 notas. De forma dispersa, foram encontrados mais 58 poemas, dos quais 14 têm formas variantes. Segundo Bernucci, a publicação dessas variantes é importante também porque mostra sua persistência em lapidar sua literatura. “É conhecido o fato de ele ser obsessivo com Os Sertões, corrigindo as três primeiras edições e fazendo alterações substanciais”, explica Bernucci.
“A totalidade de seus poemas revela que sua poesia não era apenas de inspiração, ele é um poeta romântico que também lapida suas obras.” Por meio das correções e variantes, é possível também acompanhar o processo de escritura dos poemas, como decidia mudar as frases, mudar o vocabulário.
Os poemas do caderno Ondas foram escritos entre 1883 e 1884, quando Euclides tinha entre 16 e 17 anos. No caderno, também possível encontrar uma série de cálculos e exercícios matemáticos que o futuro engenheiro praticava.
“A rigor, os primeiros textos de autoria comprovada de Euclides são poemas”, diz Hardman. Na opinião de Bernucci, esses poemas não foram publicados devido a uma característica conhecida de Euclides: seu feroz juízo crítico em relação à própria obra. No começo do caderno encontra-se, por exemplo, a seguinte anotação: “Eu tinha 15 anos. Contém, pois, a tua ironia, quem quer que sejas…”. Euclides não apenas “pede desculpas” ao leitor como mente, para menos, a sua idade (no mesmo caderno, ainda há uma anotação em que ele indica ter 14 anos e diz que esta é uma observação fundamental” para explicar a “série de absurdos” contidas naquelas páginas).
Apesar da forte autocrítica, Euclides nunca deixou de escrever poesia. Os poemas dispersos dele foram produzidos de 1885, quando ele tinha 19 anos, até 1906. Bernucci também lembra que o uso da poesia e de formas poéticas percorre toda a produção de Euclides. “Guilherme de Almeida Prado foi o primeiro a dizer que a estrutura de Os Sertões era eivada de poesia; e, recentemente, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos mostraram como há, inclusive, trechos que podem ser lidos como versos alexandrinos.”
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Ironia…(?)
Como os tufões que rolam do infinito
E rebramem na fronte das maretas
Da rocha assim no peito de granito
Bramavam, batendo, as picaretas…
De cada malho audaz se erguia um grito
As alavancas fortes, férreas, retas
Tombavam, firmes com fragor maldito –
Dos pulsos dos viris, rijos atletas!
Lançaram fogo à mina e n’esse instante
Um som ásp’ro – rasgado, retumbante –
Bramiu por entre a vastidão sombria…
Dissipou-se a fumaça… ouviu-se um brado
– Gemia um operário, ensanguentado!
N’um riso imenso a pedra se entreabria!
(Poema datado de 10/11/1883, integrante do caderno Ondas)