Texto originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 1/12/2002
Autora de uma edição crítica de Os Sertões, publicada originalmente nos anos 1980, Walnice Nogueira Galvão é um dos nomes mais importantes dos estudos sobre a obra de Euclides da Cunha.
Entre seus trabalhos, está Ao Calor da Hora, ensaio sobre a cobertura de vários jornais da Guerra de Canudos. Walnice também organizou, com Oswaldo Galotti, a Correspondência de Euclides da Cunha (Edusp). Mais recentemente, assina, com Fernando da Rocha Peres, edição fac-similar de trechos do Breviário de Antonio Conselheiro (EdUFBa).
Nesta entrevista, ela fala sobre a influência de Victor Hugo sobre Euclides, as relações entre Os Sertões e a Bíblia e os motivos que levaram ao imediato reconhecimento das qualidades do livro.
Os Sertões foi publicado cinco anos após a guerra. Muitos já haviam escrito sobre o conflito, mas ninguém obteve grande repercussão. Por quê?
Walnice Nogueira Galvão – Porque é boa literatura. É bem escrito, e os outros, não. Só se fala ainda hoje da Guerra de Canudos por causa de Os Sertões. Quase não se fala do Contestado, por exemplo. É como a Guerra de Troia, que sobreviveu graças à Ilíada e à Odisseia.
A primeira crítica, de José Veríssimo, extremamente elogiosa, é publicada no dia 3 de dezembro de 1902 (o livro foi lançado dia 2 de dezembro de 1902). O que permitiu à época um reconhecimento tão imediato?
Walnice: Estilisticamente, o livro de Euclides estava muito adaptado à época. Combinava elementos naturalistas e parnasianos com traços românticos – como a identificação do escritor como defensor dos oprimidos. Além disso, a retórica respondia a um gosto de seu tempo. Também acredito que Euclides cumpre uma função ideológica importante. A opinião pública que fora atiçada contra os canudenses voltara atrás. Percebera o grande erro e começara a chamar a guerra de fratricida, etc. Quem cumpriu a função de fazer um grande mea-culpa da guerra foi Os Sertões, permitindo uma catarse para essa opinião pública.
Nessa crítica, Verissimo se queixa da linguagem de Euclides. Haveria aí o diagnóstico da presença de um romantismo já ultrapassado, ainda que indiretamente?
Walnice: Na verdade, Verissimo se queixa do excesso de termos técnicos e científicos, que é a parte moderna de Os Sertões – embora, hoje, ela pareça antiquada. Mas o romantismo tem um papel fundamental em Os Sertões. Na minha opinião, são os românticos, e não os modernos, que descobrem a rupturas com o passado e abrem as portas do inconsciente, das mazelas da alma, dos delírios. “Inventam” a figura do escritor, do vate, um ser inspirado, em contato com as forças telúricas, atávicas, até sobrenaturais, fora da sociedade burguesa e industrial. Esse vate se preocupa com o seu papel histórico de indivíduo afastado deste mundo, mas em comunhão com a massa. Isso aparece claramente em Euclides, sem as forças sobrenaturais, claro, porque ele é um ateu e positivista, Victor Hugo é um modelo de Euclides, um modelo seguido por ele e por Castro Alves, entre outros, na literatura brasileira.
Uma das fontes de composição de Os Sertões, na sua opinião, é a Bíblia.
Walnice: Assim como a Bíblia começa no Gênesis e termina no Apocalipse, Os Sertões começa pela origem da Terra e acaba descrevendo o aniquilamento, a obliteração. Mas essa relação aparece em vários momentos. A certa altura, o livro passa a encarar Canudos como os canudenses o faziam. Euclides realiza uma inversão demoníaca das imagens do Apocalipse. Nova Jerusalém, a cidade descrita por São João, é a cidade do Cordeiro, representação de Jesus, e é cravejada de pedras preciosas. Também é organizada, com ruas quadriculadas, e amurada, atravessada pelo Rio da Vida, em cuja margem cresce a Árvore da Vida. Já Canudos, a Nova Jerusalém de Os Sertões, é feita de casas de pau-a-pique, de terra – o não belo, portanto cortada por um rio seco, um rio da morte, o Vaza-Barris, em que cresce uma vegetação de caatinga, atrofiada. Nela, o carneiro se transforma num bode, representação do Diabo. Nesse momento, Euclides adere a visão dos vencidos, que veem seu Belo Monte, seu Paraíso, se transformar num inferno, devido aos ataques do Exército.
É essa adesão que garante a boa literatura de Os Sertões? A sensação de que ele aderiu à visão dos vencidos não depende da simpatia dos leitores pelos canudenses?
Walnice: Quando você leu a Ilíada, teve simpatia não pelos gregos, mas pelos troianos. Não foi você que quis isso, foi Homero. A ideia de que Homero cantou o vencido valoroso é bastante conhecida. Euclides também se mostra capaz de deplorar o massacre e o martírio dos canudenses. Também garante a boa literatura de Os Sertões o fato de Euclides ter percebido que o episódio de Canudos era parte do processo de modernização capitalista do país e do mundo, um processo que ainda não acabou. Claro que ele não dá esse nome ao processo, mas o identifica: em alguns momentos o chama de embate racial, em outros, de progresso ou de avanço inelutável.
Desde os anos 1950, com os estudos de José Calasans, a história de Canudos e da guerra passou a ser pesquisada de forma relativamente independente de Os Sertões. Do ponto de vista histórico, o livro de Euclides estaria, hoje, superado?
Walnice: Pelo menos até agora, apesar dos equívocos científicos, antinomias e paradoxos, ninguém narrou melhor esse conflito. Uma nova visão da guerra, ao mesmo tempo abrangente, analítica e sintética, teria de partir de um novo quadro teórico, diferente do utilizado per Euclides. Há muitos bons trabalhos sobre a guerra, que permitiram vê-la a partir de novos ângulos, mas não a ponto de negar ou mesmo de superar Os Sertões.
Mas Canudos já se “libertou” da visão de Euclides, assim como o Conselheiro, a partir da publicação de Antonio Conselheiro e Canudos (1974), de Ataliba Nogueira, teria se libertado da imagem do líder sebastianista?
Walnice: Na verdade, Euclides apresenta ao leitor dois Conselheiros. Um deles é o “messias de feira”, “truão”, que balbucia frases do Apocalipse. Ele é também o “grande homem pelo avesso” – uma figura de linguagem que faz a transição de um modelo para o outro – é um “heresiarca”, algo negativo, mas sério, que tem a dignidade de um apóstolo, condutor de homens, e compara Canudos ao cristianismo primitivo. Atualmente, Canudos tem uma imagem um tanto livre da de Euclides, e, como Conselheiro, tem sido recuperada como algo praticamente só positivo, talvez com certo exagero. Ao contrário do que às vezes se quer fazer crer, Canudos não era uma república socialista, mas, sim, assistencialista: o que havia era uma redistribuição, por meio da caridade, do excedente, mas era uma sociedade de proprietários e não proprietários, de ricos e pobres.
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