Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo, em 15 de setembro de 2002.
Para celebrar o centenário de publicação de Os Sertões, o professor de teoria da literatura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Rinaldo de Fernandes organizou uma coletânea multidisciplinar: O Clarim e a Oração (Geração Editorial, 598 págs.).
“Ao planejar este livro, a questão que eu me colocava inicialmente era a seguinte – saber de que forma jornalistas, ficcionistas, poetas, historiadores, sociólogos e críticos literários contemporâneos viam Os Sertões, nos cem anos de sua publicação”, escreve Fernandes na apresentação da obra.
O resultado é um livro que mistura informações, análise, reverência, críticas amenas e mesmo severas a uma das poucas obras de não-ficção que integram o cânone literário brasileiro.
Integram o time de colaboradores, entre outros, Ariano Suassuna (“Euclydes da Cunha, Canudos e o Exército”), Benedito Nunes (“A Cidade Sagrada”), Haroldo de Campos (“Da Transgermanização de Euclides: Uma Abordagem Preliminar”) e Luiz Costa Lima (“Euclides: Ruínas e Identidade Nacional”).
A obra também traz entrevistas concedidas por moradores da região de Canudos a Sandra Moura e Suênio Campos de Lucena.
Um dos destaques da obra é um texto assinado por Roberto Ventura, professor do departamento de teoria literária da USP, morto em agosto. Ventura, autor de “Euclides da Cunha no Vale da Morte”, preparava uma biografia do escritor e jornalista.
Ventura, no artigo do livro, discute a construção histórica do combate entre as forças republicanas e os canudenses, citando, entre outros autores, o norte-americano Hayden White, que enfatiza a proximidade entre a escrita da história e os modos literários de narrar.
Paralelamente, analisa as obras Coração das Trevas, do polonês Joseph Conrad, publicada em 1902 como Os Sertões, e É Isto um Homem?, de Primo Levi, de 1947, que conta sua experiência como prisioneiro do campo de concentração nazista de Auschwitz.
Para Ventura, “a visão do horror, que Euclides encarou no vale da morte em Canudos, às margens do Rio Vaza-Barris, no nordeste da Bahia”, foi também exposta por esses escritores.
Vários aspectos da obra e da importância de Canudos são percorridos no livro organizado por Fernandes. Ariano, por exemplo, discute a origem do termo favela para designar os bairros pobres do Rio e a relação do termo com o Morro da Favela, de onde as tropas do Exército bombardearam Canudos.
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32 intelectuais colaboram em obra que celebrou o centenário de publicação de ‘Os Sertões’
Luiz Costa Lima faz uma comparação do uso dos termos “ruínas” e “identidade nacional” em Os Sertões e no livro póstumo de Euclides, À Margem da História.
Lembrando que Euclides da Cunha foi enviado como repórter pelo Estado para cobrir a guerra, o escritor Moacyr Scliar, em “Jornalismo e Literatura: A Imprecisa, e às Vezes Fértil, Fronteira”, conta ter submetido um trecho bastante conhecido de Os Sertões a editores de um jornal gaúcho – que defenderam que o texto deveria ser publicado como artigo, e não nas páginas destinadas às notícias.
O folclorista José Calasans, morto em 2000 e um dois maiores estudiosos da Guerra de Canudos, discute “As Mulheres de ‘Os Sertões’”, num texto originalmente publicado em 1959. Calasans lembra um discurso do romancista baiano Afrânio Peixoto, que, em 1911, dois anos depois da morte de Euclides, em sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Peixoto, referindo-se ao jornalista e escritor, afirma: “Não escreveu de um regato, de um crepúsculo, canto de pássaro ou capricho de mulher. Jactou-se mesmo, uma vez, de não haver em todos os seus livros, uma só destas criaturas”.
Calasans mostra que não é bem assim, que há, sim, mulheres em Os Sertões, ainda que raras, e procura analisar a relação de Euclides, órfão desde menino, com elas. E defende que ele, “não tendo sido autor de obra de ficção que lhe permitisse a liberdade de criar suas mulheres, delas fazendo o que bem quisesse”, lhe restou apenas “o direito de interpretar a seu modo as personagens femininas que foram surgindo na área dos estudos históricos e sociais que lhe coube investigar”.
O tema volta no texto “Presença das Mulheres em Canudos”, de Luzilá Gonçalves Ferreira. “É preciso lembrar, antes de tudo, que Euclides foi um homem de sua época”, o que justificaria o fato de as mulheres serem elementos “quase marginais” na obra.
Entre os poetas, Adriano Espínola homenageia Euclides (“Sobre uma frágil cabana,/ o engenheiro pensa e sonha/ uma ponte firme ao lado/ e uma dura guerra ao longe”); Alberto da Cunha Melo assina “Belo Monte” (“Cinco mil sodados atiram/ contra cinco ou seis mil taperas,/ mas não era guerra de iguais,/ guerra de feras contra feras”); José Nêumanne Pinto escreve “Abolo do Semi-Árido” (“Visto do sertão, o mundo é candela:/ as mãos de Euclides, os peitos de Gabriela”) e Marcus Accioly, Antonio Conselheiro (“Sou Moisés, João Batista, sou São Jorge:/ o meu ‘cavalo’ vai contra o dragão/ e vou contra o dragão e a lua foge/ da lança ensanguentada em minha mão”).
Indiscutivelmente na contramão da maioria dos textos, está “Declives da Cunha”, de Flávio R. Kothe. Kothe é autor de O Cânone Colonial e de O Cânone Imperial (Editora da UnB). Deve lançar ainda O Cânone Republicano. Nestes três livros, procura desconstruir os discursos em torno das mais reverenciadas obras da literatura brasileira.
Para ele, os escritores brasileiros mais escondem que revelam a realidade nacional. Não é muito diferente sua visão de Euclides: para ele, Os Sertões é uma obra a ser “olvidada”, ou seja, esquecida. “Esta obra é ficção, porém, contra a sua expressa intenção: mente sobre a história, a pretexto de reproduzi-la fielmente. Quanto mais o autor mente, tanto mais ele precisa fazer de conta que é um cientista da natureza e da história.