A França está pegando fogo novamente. Menos de dois meses após os grandes dias de mobilização contra a polêmica reforma previdenciária de Emmanuel Macron, aprovada por decreto, o território francês novamente nos brinda com imagens surpreendentes de veículos ou prédios incendiados, saques a lojas ou duros confrontos com a polícia.
Embora os tumultos também tenham eclodido nas grandes cidades, os protestos se concentraram nos chamados banlieues (subúrbios), pois eles foram o local de moradia e o cenário do assassinato do jovem Nahel pelas mãos da polícia. O longo histórico de abusos policiais nos banlieues (como as mortes dos jovens Zyed e Bona, em 2005, ou o caso Théo, em 2017), e uma maior intolerância às ações policiais após, por exemplo, o movimento dos coletes amarelos, proporcionaram um terreno fértil para uma explosão social. Esses fatores foram agravados por outros descontentamentos mais profundos, como o provocado pela reforma previdenciária e sua inerente crise de legitimidade democrática.
Vale a pena ressaltar que os tiroteios com a polícia são um problema real na França e que, somente entre 2021 e 2022, 44 pessoas foram mortas dessa forma. Isso é mais do que entre 2010 e 2015 – inclusive, um ano marcado pelo contexto terrorista, com os ataques de novembro em Paris. Desde a reforma legal de 2017, que favoreceu o uso de armas de fogo a critério de cada policial em casos de não cooperação durante as averiguações, os policiais mataram, em cinco anos, quatro vezes mais pessoas por resistência à autoridade do que nos 20 anos anteriores.
Além disso, as averiguações de identidade são muitas vezes racialmente discriminatórias e as pessoas não brancas têm muito mais probabilidade de se tornarem automaticamente suspeitas e, portanto, também vítimas. Esse duplo padrão no tratamento policial da população racializada e do restante gera um forte sentimento de injustiça nos subúrbios, que é reforçado pela relação quase antagônica com o Estado que essa suspeita policial estabelece. Lá, onde a retirada do estado social ou a degradação progressiva dos serviços públicos é sentida diariamente, a polícia é o agente do Estado com o qual os residentes mais interagem e a que molda a imagem que eles têm do Estado em termos mais gerais.
É necessário lembrar que, nos últimos cinco anos, os subúrbios vivenciaram em primeira mão o abuso, primeiro, do estado de exceção após os ataques em Paris e Nice, que se tornou parte da norma ordinária, e, segundo, do estado de emergência, com a pandemia. Ao mesmo tempo, esses habitantes veem como o governo nega a existência da violência policial ou do racismo institucional de que são vítimas.
Os adolescentes que protestam estão intimamente familiarizados com essas práticas, sabem que a qualquer momento podem ser vítimas e estão lutando por um Estado que respeite sua existência. Devido a esse senso compartilhado de injustiça que canaliza, podemos dizer que se trata de uma revolta política.
Se essas realidades são negadas pelos poderes políticos, isso se deve em grande parte ao controle que os principais sindicatos policiais têm sobre o Executivo desde o governo Nicolas Sarkozy. O bloco sindical majoritário, Alliance-UNSA Police, emitiu um comunicado em 30 de junho com uma clara retórica belicista de extrema direita, refletindo um imaginário colonial e racista, exibindo sua lógica corporativista e ameaçando desobedecer ao governo se ele não atender às suas exigências. Há diferenças no clima político e na reação inicial do governo entre hoje e 2005.
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Após assassinato de Nahel pela polícia, franceses manifestaram nas ruas da França
Em 2005, o Ministério do Interior de Sarkozy estava empenhado em jogar mais lenha na fogueira como uma forma de fazer sua campanha pré-eleitoral usando o tema da segurança. Lembremos que Sarkozy negou que a polícia estivesse perseguindo os dois jovens que morreram (Bouna Traoré e Zyed Benna) e chamou os jovens que estavam se manifestando e participando dos tumultos na época de turba.
Em 2023, temos um vídeo que desmonta completamente a primeira versão policial, de legítima defesa. Em parte por causa disso, as primeiras reações do governo foram considerar a morte do jovem Nahel “indesculpável” e pedir o regresso da população à calma. No entanto, rapidamente descartou os inúmeros distúrbios urbanos como “injustificáveis” e mobilizou uma retórica baseada em apontar a violência e denunciar os “desordeiros”, uma categoria que retira dos jovens suas demandas políticas. O governo parece ter deixado para trás a fase de “compreensão”, talvez estimulado pelos 69% da opinião pública que parece condenar os distúrbios, e partiu para a ofensiva com uma estratégia clássica de criminalização, despolitização e infantilização de um protesto legítimo.
Macron culpou os videogames e as redes sociais pela violência juvenil, em uma busca clássica por um bode expiatório que evita se aprofundar nas causas reais. A influência das telas explicaria o mau comportamento daqueles que são considerados “menores intelectuais”, como os adolescentes ou a classe trabalhadora. A influência perniciosa do consumo audiovisual como causa da violência nunca foi comprovada. Insistir nisso só serve para negligenciar, consciente ou inconscientemente, os fatores estruturais da violência, como a marginalização nas periferias.
A ideia de que as redes sociais ou os videogames fazem os radicais “agirem” reproduz o modelo ultrapassado da agulha hipodérmica de Harold Dwight Lasswell: os receptores expostos às redes são passivos e são facilmente convertidos ao “radicalismo” por elas. Diante dessa suposta violência “por mimetismo”, Macron ameaçou censurar as redes sociais, mas o professor de sociologia Fermín Bouza já descreveu os resultados inócuos desse tipo de manobra de distração: “enquanto os bons cidadãos que querem melhorar as coisas se divertem com essa censura […], as verdadeiras causas da violência permanecem intocadas e as políticas que induzem fortemente à desigualdade e, é claro, à violência, são desenvolvidas sem controle”.
Por outro lado, o ministro da Justiça, Éric Dupond-Moretti, que disse que o papel do Estado não é educar as crianças, detalhou qual deveria ser a resposta penal do governo contra os autores da violência urbana e especialmente contra os pais de menores: dois anos de prisão e multas de 30 mil euros ou oficinas de responsabilidade parental para aqueles que não a exerçam. Ao falar de “responsabilidade parental“, o ministro estigmatiza diretamente os pais de jovens de bairros populares, se permitindo reprimir aqueles que, a seu ver, não cuidam adequadamente de seus filhos.
Apontar o dedo para as redes, os videogames e os pais faz parte da mesma estratégia de responsabilizar tudo, exceto as ações e políticas do próprio governo. Assim, os distúrbios urbanos deixam de ser um problema político com causas e soluções que podem ser abordadas no campo da política, e se tornam um problema privado de valores e educação dos pais.
(*) Aldo Rubert é doutor e professor de sociologia política na Universidade de Lausanne, na Suíça.
(*) Tradução de Pedro Marin.