Lendo o texto de um colega me peguei a pensar. Como evitar a passagem de uma Guerra Mundial em pedacinhos, como nomeou o Papa Francisco, para um Mundo Despedaçado? O primeiro texto escrito para essa coluna desenha uma análise de conjuntura internacional de crises e sobressaltos, com apenas um soluçar feliz: os levantes no deserto do Sahel contra o colonialismo francês.
Em momentos de desânimo, há que buscar consolo na poesia, e Maiakovski me acolheu. “Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo, de cada fronteira distante, surgiu um cheiro de pólvora, perseguindo-me até em casa. Nestes últimos vinte anos nada de novo há no rugir das tempestades. Não estamos alegres, é certo, mas por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras, havemos que atravessá-las, cortando-as ao meio, como uma quilha corta as ondas”.
O cheiro de pólvora nos persegue até em casa. A pólvora genocida na Palestina, que se comporta como moeda na Ucrânia, que assassina nas quebradas (como não se assustar com o que vem ocorrendo na Baixada Santista?), que ameaça em Brasília, é a mesma. Concentrar as possibilidades de produção, circulação, e determinação de quem aperta o gatilho, e quem recebe a bala, é uma questão local e global. Israel testa na Palestina os armamentos vendidos ao Brasil que, travestidos de equipamentos de vigilância numa já de antemão derrotada guerra às drogas, promovem o controle da ordem interna, inerentemente desigual. O governo brasileiro lançou uma política industrial bastante esperada, onde a indústria de defesa consta como prioridade, além de incluir uma gorda fatia orçamentária no PAC para a área. Como as questões anteriores se relacionam na construção de uma grande estratégia, que tem impactos nas organizações militares, não é objeto de discussão pública.
Lula é o maior quadro político do Brasil. Se forjou na ditadura que evitou mencionar, num tempo de céu de Brigadeiros e tempestades. Mas foi presidente num momento de mar calmo. Em 2002, o Brasil e o mundo vivenciavam uma conjuntura mais fácil do que a atual, e a estabilidade nas relações civis-militares deu-se à equidistância. Lula não afrontou a autonomia militar. Ao capitular na última semana diante da História, o presidente parece desejar retornar aos dias de glória. Mas a história é um navio que só anda pra frente e, como diz o velho ditado, mar calmo não faz bom marinheiro. O Brasil é outro, e o mundo é outro. Mas as Forças Armadas são as mesmas, e Lula também. Instituições regidas pela hierarquia e disciplina, nas quais comandar e ser comandado é uma forma de vivenciar o mundo, observam a ausência de manifestações sobre 1964 não como um sinal de boa vontade, uma bandeira branca a tremular no mastro, mas de fraqueza, e sobre um inimigo fraco há que se avançar.
Talvez uma maneira de transformar texto em quilha seja abrir a caixa preta das Forças Armadas. Algumas perguntas têm respostas, outras dezenas não. Predomina o nosso desconhecimento e, por isso, somos devorados. Já que falamos sobre como um militar observa a ausência de manifestações do presidente, é pertinente ampliar a questão. Como militares (sim, aqui como algo generalizável, embora não o sejam) veem a esquerda?
Nem todos pensam que 1964 foi uma revolução preventiva. Muitos concordam que houve excessos na repressão ideológica durante os governos militares, mas não aceitam que a instituição seja responsabilizada por atos cometidos por uma minoria “fora do controle”, quando a esquerda também tinha uma “minoria fora de controle”. Percebem como 1964 ameaçou a hierarquia e a disciplina, pois o envolvimento político direto provocou cisões dentro da caserna, mas rediscutir o tema não traria nada de positivo para a Instituição, e muito menos pedir desculpas.
Militares acreditam que a esquerda defende um ambiente com direitos iguais para todos, sem os correspondentes deveres. Essa soma teria como resultado a ineficiência coletiva e a indolência individual, além de confrontar um valor forte (não só dentro dos quartéis) que é a meritocracia.
Têm um verdadeiro horror ao que denominam “politicamente correto”, como práticas de enfrentamento ao racismo, machismo e homofobia. Acreditam que elas dividem o povo brasileiro, afetam a coesão nacional. Nesse tema, a esquerda que critica as pautas “identitárias” pode encontrar um bom parceiro.
O nacionalismo militar é antagônico ao internacionalismo da luta de classes. Questionados sobre o que é uma nação, como ela é formada, e como construir sua independência, surgem ruídos, não tanto sobre as alianças internacionais a serem firmadas, nas quais os EUA seguem magnânimos, mas sobre como construir as parcerias. Mas não se iludam buscando o velho desenvolvimentismo que levou ao bloco político que logrou a criação da Petrobrás. Este já morreu antes ainda do final da Guerra Fria.
Militares têm uma noção difusa sobre marxismo cultural, que vem sendo construída ao longo das últimas décadas. Nela, a esquerda obteve sucesso em conduzir gradualmente uma revolução de estilo gramsciano no Brasil, ocupando grandes espaços em locais estratégicos para a formação da opinião pública, como a imprensa e as universidades públicas. Cumpre então usá-los para influenciar, também, a política de defesa nacional.
Na atual conjuntura mundial, talvez Marx nunca estivesse tão certo: não basta interpretar o mundo, há que transformá-lo. Sai pra lá Caymmi, leva o canto da Sereia do Fim do Mundo que, por aqui, ninguém acha que é doce morrer no mar.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.