Esta reportagem faz parte da série especial de Opera Mundi com relatos de brasileiros que viveram o fim do governo Salvador Allende e início da ditadura Augusto Pinochet, episódio que completa 50 anos em 11 de setembro de 2023.
A história de Janete Capiberibe é a terceira. A seguir, conheça a caminhada da família de militantes da ALN de Carlos Marighella, que fugiram do Brasil cruzando o Rio Amazonas, depois o Lago Titicaca, até chegar no Chile, onde presenciaram um processo de reforma agrária e tiveram que enfrentar a cruel Caravana da Morte.
As manhãs de setembro na região central do Chile são sempre muito frias e escuras. Não era diferente naquele 11 de setembro de 1973, em Purissima, um pequeno povoado a cerca de 225 quilômetros ao sul de Santiago, onde vivia o casal Janete e João Capiberibe, com seus três filhos.
Por volta das 6h, João se preparava para iniciar uma viagem de trem. Iria até a capital do país buscar documentos que seriam importantes para a família encarar novos tempos de dificuldade, em um país prestes a sucumbir a uma ditadura. Os Capiberibe conheciam os sinais, pela experiência do prelúdio do golpe de 1964 no Brasil, que vivenciaram quando eram estudantes em Macapá.
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Porém, os militares chilenos foram mais rápidos. Enquanto João passava o café, o rádio transmitia ao vivo a marcha de tanques partindo de diversos quartéis em direção a Santiago e o voo dos caças Hawker Hunter da Força Aérea, que se preparavam para bombardear o Palácio de La Moneda, onde estava atrincheirado o então presidente Salvador Allende.
“Capi (como Janete chama seu marido João) cancelou a viagem e nós passamos o dia pensando em um plano para fugir novamente de uma ditadura”, conta ela a Opera Mundi. “Era mais difícil daquela vez, porque tínhamos três crianças pequenas, duas delas de colo. Quando fugimos do Brasil era apenas a Arti”. A “Arti”, à quem a militante se refere, era a bebê que se tornaria, décadas depois, a antropóloga Artionka Capiberibe, que atualmente é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A decisão foi tentar a sorte em algum esconderijo na cidade de Talca, capital da província de Maule e principal cidade da região onde viviam. No dia seguinte, com a ajuda de pessoas ligadas à Igreja Católica, eles conseguiram ingressar na casa episcopal da diocese de Talca, outrora usada como retiro espiritual, mas que se transformou em refúgio para opositores do novo regime.
Durante as semanas vividas naquele abrigo, a família percebeu a dimensão da violência da ditadura pinochetista, com policiais e militares tentando invadir o local quase diariamente e promovendo as mais diversas formas de ameaça. O bispo de Talca, dom Carlos González, conseguiu impedir a invasão.
“Poucos dias após o golpe, o Exército organizou expedições por todo o Chile, passando de cidade em cidade e prendendo ou até matando pessoas que consideravam como subversivas. Se você fosse estrangeiro, era considerado automaticamente um ‘terrorista’”, lembra.
A operação militar que ela descreveu foi um dos mais cruéis casos de violação aos direitos humanos realizados durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), e ficou conhecida como Caravana da Morte.
Caravana pela vida
A história de como Janete e João Capiberibe chegaram ao Chile começou em um 7 de setembro, no ano de 1970, quando foram presos pela ditadura brasileira em meio a um operativo realizado em Belém do Pará. O casal militava na Aliança Libertadora Nacional (ALN): “o Capi era um dos líderes da ALN no Norte e Nordeste, inclusive chegou a se reunir pessoalmente com o [Carlos] Marighella”, recorda .
No momento da prisão, o casal esperava a chegada de sua primeira filha, Artionka. Mesmo grávida, Janete ficou presa por dois meses em um quartel da Aeronáutica em Belém do Pará. “A ditadura me soltou, com o plano de me vigiar para tentar capturar outros membros da organização que tentassem entrar em contato comigo, mas eu também tomei minhas precauções”, relata.
Enquanto isso, João enfrentava prisão e tortura em um quartel do Exército na capital paraense, até que sua debilitada condição de saúde fez com que ele fosse levado à Santa Casa de Belém, onde foi atendido por estudantes de medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), alguns deles simpáticos à causa.
Após três meses hospitalizado, João colocou em prática um bem sucedido plano de fuga, com a ajuda de estagiários de medicina da UFPA e do cardiologista Almir Gabriel, um apoiador da guerrilha, que, décadas depois, seria governador do Pará (entre 1995 e 2003).
Escapar da prisão foi apenas o primeiro passo na odisseia de João Capiberibe. A parte mais difícil do plano era fugir do Brasil junto com Janete e com uma bebê de oito meses de idade, que havia nascido enquanto ele estava preso.
Os preparativos estéticos eram essenciais para a jornada. Janete pintou o cabelo, João cortou a barba e a cabeleira de revolucionário. Precisava ser convincente o disfarce de retirantes nordestinos, com o qual tentariam cruzar boa parte do território amazônico. “Chegamos a cruzar com ex-colegas de universidade, que não nos reconheceram”, lembra Janete.
O plano inicial incluía uma rota de fuga pelo Amapá, que os levaria à Guiana Francesa, mas esse trajeto incluiria uma maior probabilidade de enfrentar uma barreira policial. O casal contou com a ajuda das irmãs Ana e Catarina Tancredi para colocar em prática outra estratégia, que consistia em fugir pelo Rio Amazonas até a fronteira com a Bolívia, pelo Estado de Rondônia. Em Gayaramirim encontraram um dentista influente no governo, que os ajudou.
“A Bolívia naquela época era governada por um militar nacionalista [o general Juan José Torres, que governou o país andino entre outubro de 1970 e agosto de 1971]. Ficamos escondidos por três meses na cidade de Cochabamba, na casa de um pastor evangélico. Aquele governo nacionalista acabou sendo derrubado por outro golpe, que foi apoiado pelos militares brasileiros, e que instalou a ditadura de Hugo Banzer (1971-1978)”.
O novo golpe obrigou os Capiberibe a retornar à sua caravana pela vida. O casal empreendeu uma nova jornada. Com a ajuda do pastor dom José, que os abrigou na Bolívia, eles chegaram no Peru, cruzando o gigantesco lago Titicaca.
O Chile e a reforma agrária de Allende
A família passou um mês na cidade peruana de Puno, durante o governo de outro militar nacionalista, o general Juan Velasco Alvarado (1968-1975). Logo partiriam a Tacna, na fronteira com o Chile, e três dias depois chegaram a Arica, no lado chileno da fronteira, onde foram recebidos por um casal de acadêmicos argentinos, professores da Universidade do Chile, que também os ajudaram a viajar até a capital.
Em 24 de dezembro de 1971, véspera de Natal, os Capiberibe finalmente chegaram à capital do Chile. Janete estava novamente grávida, esperando os gêmeos Luciana e Camilo, que nasceriam em maio do ano seguinte, em Santiago. O menino se tornaria governador do Amapá. A menina seria especialista em comunicação, formada pela Universidade de Concordia, no Canadá, e com mestrado na Universidade de Brasília (UnB).
Os melhores anos da família Capiberibe no Chile não foram vividos após o nascimento dos gêmeos. Janete e João tiveram a oportunidade de se mudar para a região de Talca, onde cursaram engenharia agrícola pela Universidade do Chile e passaram a viver em um assentamento demarcado durante a reforma agrária promovida pelo governo da Unidade Popular (UP), como era conhecido o projeto político do presidente Allende.
“O Allende foi ótimo para o Chile, especialmente na saúde. Eu tive um ótimo tratamento quando estava grávida, apesar de ser estrangeira, e os meus filhos todos tiveram bom tratamento, inclusive a minha menina que havia nascido antes de eu chegar ao Chile”.
A Opera Mundi, Janete recordou que “também no caso da reforma agrária havia um processo muito bem organizado de redistribuição de terras, e também de ensinar as pessoas sobre o uso da terra, sobre técnicas agrárias para produção em comunidade, com o apoio de agrônomos da Universidade do Chile. Nós aprendemos muitas coisas naquela época. Eu aprendi até mesmo a fazer vinho”.
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Família Capiberibe tive que enfrentar a cruel Caravana da Morte
A reforma agrária chilena teve início em 1967, no governo anterior ao de Allende, do presidente democrata cristão Eduardo Frei Montalva (1964-1970). No entanto, foi a partir do projeto da Unidade Popular que o processo tomou força de vez, não só com a aceleração dos trâmites de expropriação de grandes latifundiários, mas também com os programas criados pelo Estado para comprar produtos cultivados nos assentamentos como aquele onde vivia a família Capiberibe.
“Claro que também enfrentava problemas, porque os latifundiários tentavam resistir, muitas vezes de forma violenta, mas também tinha muito apoio da população mais pobre, que percebia que aquelas iniciativas buscavam melhorar suas vidas”, relata Janete.
Caravana da Morte
A Unidade Popular alimentou nas classes chilenas mais vulneráveis a esperança de uma vida mais digna. Mas, em setembro de 1973, o sonho acabou, e de uma forma muito mais violenta que na canção desabafo de John Lennon, gravada três anos antes.
Após a morte de Allende, os militantes dos partidos que compunham a coalizão Unidade Popular (o Partido Socialista e o Partido Comunista do Chile) passaram a ser perseguidos e presos. Houve casos de pessoas que foram torturadas. Houve casos de pessoas que foram torturadas até a morte. Houve casos em que, com um pouco menos de crueldade, se decidiu executar os presos fuzilando-os, em vez de fazê-lo através da tortura.
Os militares, policiais e demais agentes da repressão não procuravam somente quem havia trabalhado no governo de Allende, ou militantes de partidos de esquerda, mas também pessoas consideradas “subversivas”, por seu pensamento progressista ou ligação com algum movimento social.
Dentro desse conceito estavam os estrangeiros. O discurso propagado pela ditadura era de que o povo chileno teria sido “enganado” por pessoas de outros países, que propagaram a ideologia marxista para “corromper o espírito nacional”, supostamente alinhado com a direita. Essa definição colocava a família Capiberibe como um alvo natural da caça aos “subversivos”.
As primeiras semanas foram dedicadas especialmente à busca desses colaboradores na cidade de Santiago e sua região metropolitana. Em 30 de setembro, Pinochet organizou duas expedições: uma com a missão de recorrer às províncias ao norte de Santiago, outra para vasculhar as regiões ao sul da capital. Sob o comando do general Sergio Arellano Stark, se iniciava o primeiro operativo de caça, apreensão e extermínio massivo de opositores, que ficou conhecido como as “Caravanas da Morte”.
A primeira Caravana foi em direção ao Norte do Chile, onde estavam as grandes minas de cobre e uma maior resistência, já que o sindicato dos trabalhadores da mineração era um dos mais fieis ao allendismo. A segunda Caravana da Morte, que partiu em direção ao Sul, chegou à cidade de Talca no início de outubro, quando os Capiberibe estavam na casa de retiro espiritual transformada em refúgio por alguns padres católicos progressistas e apoiadores da Unidade Popular – e cuja ligação com a Igreja Católica os protegia da sanha pinochetista.
“Eram dias de muito medo, de militares batendo na porta, o padre tentando impedir a entrada, negociando com os repressores, e ao mesmo tempo tentando encontrar meios para tirar a gente de lá, porque em algum momento eles conseguiriam entrar e prender quem eles pudessem”, lembra ela.
Nesse meio de fuga, surgiu ainda no início de outubro, quando os religiosos conseguiram que uma delegação da Cruz Vermelha, com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU), enviasse uma kombi para resgatar alguns dos refugiados que estavam na casa episcopal.
A família Capiberibe embarcou no veículo e encarou um percurso que normalmente tardaria cinco horas, mas que durou quase um dia inteiro, devido às diversas vezes em que foram parados em barreiras militares nas estradas. “Foi uma das viagens mais difíceis das nossas vidas, já que tínhamos três crianças pequenas e em vários momentos achávamos que não conseguiríamos chegar em Santiago sem sermos presos, mas acabou dando certo e nós escapamos assim da Caravana da Morte”.
Morte na piscina
De volta a Santiago, a família Capiberibe foi levada ao Abrigo Padre Hurtado, onde permaneceu por três meses, sob os cuidados de uma Comissão da ONU para refugiados. O local mantinha dezenas de pessoas que eram procuradas pelos repressores, a grande maioria estrangeiros – especialmente brasileiros e bolivianos, segundo Janete.
“Assim como em Talca, tivemos que enfrentar um cotidiano de ameaças de invasão, acho até que mais violento, porque dessa vez havia tiros, pedras que eram atiradas pelas vidraças, geralmente durante a madrugada”, conta a brasileira.
A estadia em Santiago era tensa e até mesmo a piscina, que servia para divertir as crianças refugiadas no local, acabou sendo cenário de uma tragédia. Um dia João Capiberibe perdeu de vista a filha Artionka e começou a buscá-la desesperadamente. A encontrou minutos depois, chocada, em frente ao corpo de um garotinho que boiava perto da borda. Havia se afogado.
O menino era filho do casal Lucas e Ruth, exilados brasileiros, que viviam no refúgio com seis filhos, uma grande família e que estava prestes a sair do Chile, graças a um asilo concedido por Cuba. Dudu, seu filho mais novo, não conseguiu deixar o país. Seu corpo foi sepultado em Santiago graças a Miriam, uma chilena amiga dos brasileiros que cedeu um lugar no túmulo da sua família, no Cemitério Geral de Santiago. A tragédia marcou não só a família como todos os refugiados brasileiros.
A família Capiberibe participará da caravana dos brasileiros que visitará o Chile para presenciar os eventos que recordarão os 50 anos do golpe de 1973. Janete conta que “uma das coisas que pretendemos fazer é visitar o túmulo do Dudu, inclusive vamos com a Helena, irmã do Dudu e amiga da nossa família. Aquele episódio nos marcou muito”.
Janete e João Capiberibe com seus filhos e netos que participarão da caravana ao Chile por conta dos 50 anos do golpe / Arquivo pessoal
Canadá e Moçambique
Após semanas no refúgio em Santiago, Janete e João Capiberibe receberam asilo político concedido pelo Canadá. Em 1974, o casal passou a morar em Quebec com os três filhos.
Janete conta que não conseguiu aprendeu o inglês vivendo no país norte-americano. “Nós estávamos em uma região onde tinha um movimento separatista muito efervescente na época, e nós apoiávamos os separatistas, que só falavam francês, então eu só aprendi o francês, porque era a língua com a qual me comunicava com eles. Claro que hoje me arrependo do sectarismo que me impediu de aprender o inglês também”, contou.
Anos depois, eles se mudaram para Moçambique, país que havia conquistado sua independência em 1975. Em Maputo, capital do país africano, João trabalhou como assessor do Ministério da Agricultura, entre 1978 e 1980.
A Lei de Anistia decretada pelo ditador brasileiro João Figueiredo em 1979 permitiu a volta dos Capiberibe ao Brasil e a Macapá, onde passaram a ser figuras políticas de grande destaque.
Entre 1991 e 2003, Janete Capiberibe foi deputada estadual no Amapá e deputada federal, representando o mesmo estado, entre 2003 e 2019. Atualmente, ela é vereadora em Macapá, eleita em 2021.
João Capiberibe foi prefeito de Macapá entre 1989 e 1993, governador do Amapá entre 1995 e 2002, além de senador, também pelo Amapá, entre 2011 e 2019.
Camilo Capiberibe foi deputado na Assembleia Legislativa do Amapá entre 2007 e 2010, governador do Amapá entre 2011 e 2015, e deputado federal entre 2015 e 2019.