A hegemonia militar dos Estados Unidos é um dos temas centrais da
geopolítica contemporânea e dos debates em torno da necessidade de se
instaurar uma ordem internacional multipolar – na qual, em princípio,
se diluiria o poder norte-americano. Este mês, o Ministério da Defesa
russo anunciou uma novidade importante: o país pretende manter a
reunião agendada para o fim do ano com a Otan (Organização do Tratado
do Atlântico Norte, aliança militar dos EUA e dos principais países
europeus). A ideia, desde 2002, é reformar a organização de maneira que
a Rússia possa participar.
Havia dúvida sobre a manutenção da agenda, devido principalmente à
tensão militar na Geórgia, que, em agosto do ano passado, invadiu a
Ossétia do Sul. A Rússia expulsou os georgianos e, no final, reconheceu
a independência do território. Desde o desmembramento da União
Soviética, em 1991, aceitou-se informalmente que a Ossétia do Sul era
uma nação autônoma e que sua estruturação como república ficaria sob a
supervisão da Rússia.
Os EUA, porém, reagiram mal à intervenção russa na época,
qualificando-a de “agressão” à Geórgia. A acusação foi repetida pelos
aliados da Otan e pelo então candidato, hoje presidente dos EUA, Barack
Obama. De lá para cá, a tensão diminuiu porque, por insistência russa,
a União Europeia designou uma comissão para apurar responsabilidades,
que, no mês passado, concluiu que o agressor foi a Geórgia. Mesmo
assim, a Rússia se considera pressionada por exercícios militares que a
Otan pretende fazer na região, e propôs diversas vezes cancelar a
reunião deste ano.
Que multipolaridade é essa?
O fato de não se ter cancelado o encontro indica que o debate está
avançando em detrimento das agressões. Mas não significa
necessariamente que a multipolaridade esteja ganhando força. Em parte
porque todos, atualmente, se dizem multipolares – inclusive a atuais
potências unipolares. A palavra “multipolar”, por si só, não quer dizer
muita coisa: qual tipo de multipolaridade? A rigor, a boa vontade da
Otan e dos russos pode levar ao oposto do que se pretende.
Essa possibilidade – de desgaste da ideia de multipolaridade – foi
destacada recentemente por um pesquisador da área, o chinês Yu Sui,
escrevendo para o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos
(IISS, em inglês), de Londres. Segundo Yu, estão aparecendo ideias
novas sobre a multipolaridade. Segundo ele, existe agora a opinião de
que o mundo não está caminhando gradualmente para uma ordem multipolar
– a tendência é o estabelecimento de uma estrutura “não polar”, que é
instável.
“Algumas pessoas estão dizendo que as coisas ficam mais fáceis em um
mundo unipolar. Volta e meia, americanos defensores da unipolaridade
alardeiam que os EUA exercem uma ‘hegemonia benigna’, capaz de
distribuir ordem na comunidade mundial. E o governo dos EUA validou
essa noção repetidas vezes, por seu envolvimento em guerras nos Bálcãs
e no Oriente Médio”.
O texto é de fevereiro do ano passado, cerca de seis meses depois de a
Rússia e a China terem realizado o maior exercício militar conjunto na
Ásia Central, não muito longe da Geórgia. Em 2008, a dupla não fez
exercícios, mas este ano bateram o recorde de 2007, em número de armas
e soldados mobilizados. E, por pouco, não introduziram uma mudança na
simulação – em vez de imaginar um ataque a forças terroristas, grupos
guerrilheiros ou traficantes de drogas, como de costume, a Rússia teria
sugerido que o alvo das manobras poderia ser a invasão de um país por
outro. A China teria recusado a sutil referência à Geórgia.
Um ponto central na reunião Rússia-Otan é o papel que a primeira
poderia ter caso aceite participar da aliança militar EUA-Europa. A
Rússia quer ter poder de veto – que mantém no Conselho de Segurança da
ONU porque continua dona do segundo maior exército do mundo, mesmo
tendo perdido o título de segunda potência mundial. A Otan tem dito que
não pensa assim, e é pouco provável que a Rússia aceite. Nesse momento,
parece mais preocupada em fortalecer uma aliança estratégica com a
China, com a qual acabou de acertar, em outubro, a criação de um
mecanismo de aviso mútuo, caso um dos dois lados decida lançar mísseis
balísticos nucleares.
O jornalista Flávio Dieguez, editor de Internacional da revista Retrato do Brasil, escreveu este artigo para o Opera Mundi.
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