O jornalista brasileiro Marcelo Godoy prestou depoimento, por videoconferência, na manhã desta quinta-feira (28/01) como testemunha no processo Condor, que tramita na primeira Corte de Assise, em Roma, na Itália. O caso julga a participação de Átila Rohrsetzer, ex-agente da ditadura militar brasileira, no sequestro, morte e desaparecimento do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Vinãs, em 1980.
Godoy foi ouvido pela Justiça italiana por conta de uma entrevista que fez com o general-de-divisão da reserva Agnaldo Del Nero Augusto, publicada no jornal O Estado de S. Paulo em dezembro de 2007, na qual o militar admitia a participação do Brasil na Operação Condor e o envolvimento da ditadura na prisão de Viñas. Segundo o jornalista, os militares brasileiros tinham conhecimento dos planos e táticas utilizadas pela repressão da ditadura da Argentina quando entregaram Viñas como preso político.
“Os militares brasileiros estavam em contato com os argentinos e eles sabiam do plano de aniquilação de prisioneiros políticos, sabiam qual seria o destino do prisioneiro após o terem entregado à Argentina”, disse.
O jornalista explica que o CIE (Centro de Inteligência do Exército) mantinha relações com o Batalhão 601, a inteligência da ditadura Argentina, e que, portanto, “o Exército brasileiro sabia do que se passava por lá, eles conheciam o destino que seria dado a um prisioneiro político que fosse entregue ao governo argentino”.
Godoy falou por quase duas horas na audiência presidida pela juíza Marina Finitie e foi interrogado por todas as partes do caso, inclusive pela defesa, um fato inédito até então.
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O advogado de Rohrsetzer questionou se o ex-agente fazia parte da cadeia de comando do sistema de repressão brasileiro, fato confirmado pelo jornalista. “Começou como operativo e foi parar no comando. Se mostrou competente e foi promovido até ser chefe, ficou no comando até 1983”, disse Godoy.
Para explicar a cadeia de comando da repressão, o jornalista ainda citou José Antônio Nogueira Belham, ex-funcionário da ditadura que chefiava a seção de operações do Centro de Informações do Exército. Belham tinha sob suas ordens o então tenente-coronel Paulo Malhães, que comandava a Operação Gringo, braço da Operação Condor no Brasil. Segundo testemunhas e o relatório da Comissão Nacional da Verdade, Malhães torturou e deu instruções de como torturar aos oficiais do Rio Grande do Sul.
“Ele [Malhães] e Átila [Rohrsetzer] eram amigos desde 1970. Existia uma relação pessoal entre os dois, se conheceram quando o gaúcho começou a trabalhar na repressão do Rio Grande do Sul”, disse.
Godoy também citou o caso de João Carlos Bona Garcia, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária e preso político do regime. “João Carlos foi preso em Porto Alegre, em 1970, e foi torturado por Rohrsetzer. Ele me mandou um e-mail contando a sua história. Enquanto o torturava, [Rohrsetzer] escutava música e se divertia. Ele era o homem da coordenação entre o Exército e as forças de ordem da região”, afirmou.
O MP italiano pediu para ouvir João Carlos Bona Garcia como testemunha e fixou a audiência para dia 26 de março.
Janaina Cesar
Marcelo Godoy prestou depoimento por videoconferência na manhã desta quinta
Amélio Erminio, o procurador responsável pelo caso, questionou o jornalista sobre o envolvimento do general-de-divisão da reserva Agnaldo Del Nero Augusto que, durante uma entrevista a Godoy em 2007, admitiu a participação do Brasil na Operação Condor e o envolvimento do regime na prisão de Viñas.
“Del Nero não era um simples general. Era um homem do serviço secreto, fez carreira no Centro de Inteligência do Exército e este órgão foi o mais importante serviço de informação militar durante a ditadura. Eles faziam a coordenação entre os diversos órgãos repressivos. Del Nero foi o chefe da seção de informação”, disse.
Além da confissão do general, existem documentos oficiais disponíveis no Arquivo Nacional, no fundo do Ministério das Relações Exteriores, que comprovam o fato e que foram encaminhados ao procurador como prova. Sobre a cadeia de comando e o nível de envolvimento de ex-agentes no caso, Godoy apresentou outra documentação produzida pela Comissão Nacional da Verdade (CNV).
O jornalista ainda foi questionado se acreditava que a operação que prendeu e entregou Vinãs à repressão argentina poderia ter sido feita sem que Rohrsetzer tivesse conhecimento. “Ele devia ter conhecimento das ordens de Brasília”, concluiu Godoy.
Por seu envolvimento no caso, Átila Rohrsetzer, que era diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul, pode ser condenado à prisão perpétua.
Único réu ainda vivo
Quando o processo começou, em 2015, eram quatro acusados, mas três morreram durante o andamento do caso.
Além de Rohrsetzer, a Corte italiana também julgava Carlos Alberto Ponzi, que chefiava a Agência do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Porto Alegre, falecido em 20 de abril de 2019, João Osvaldo Leivas Job, ex-secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, morto em 11 de novembro de 2019, e Marco Aurélio da Silva Reis, delegado que ocupava o cargo de diretor do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e que morreu em 2 de junho de 2016.
O caso brasileiro é um desmembramento do grande processo Condor que condenou, em 8 de julho de 2019, em apelação, 24 ex-militares de ditaduras sul-americanas à prisão perpétua por assassinatos de cidadãos de origem italiana cometidos entre 1973 e 1980.
Viñas era militante do movimento Montoneros e lutava contra a ditadura militar argentina comandada pelo general Jorge Rafael Videla. Resolveu deixar o país de origem para se refugiar na Itália, terra de sua mãe. Assim que cruzou a fronteira com o Brasil, foi preso e entregue a agentes da repressão da Argentina. Passou um breve período em um centro de detenção clandestino em Paso de Los Libres. Depois disso, foi levado ao Campo de Mayo, o centro de detenção usado pelo Batalhão 601. Até hoje seu corpo não foi encontrado.
A colaboração entre as agências de inteligência das ditaduras do cone sul era uma prática usual da Operação Condor. Aqueles que escapavam de um dos países membros da operação eram sequestrados com a ajuda de autoridades locais e depois levados para seu país de origem, onde eram presos em centros de detenção clandestinos, interrogados, torturados e mortos.
Opera Mundi é o único veículo de imprensa brasileiro a cobrir o processo.
Dificuldades no depoimento
Em 31 de janeiro de 2020, o procurador do caso anunciou que chamaria Godoy para depor. A audiência havia sido marcada para 28 de maio, mas por causa da pandemia do novo coronavírus, foi cancelada e remarcada para o dia 10 de setembro.
Nesta data, a Corte já estava em sessão quando foi anunciado que Godoy não iria depor, pois não havia recebido nenhuma comunicação do governo brasileiro a respeito, como apurou, à época, a reportagem de Opera Mundi.
A carta rogatória solicitando o seu depoimento havia sido enviada pela Justiça italiana às autoridades brasileiras através de canais diplomáticos, mas o documento foi devolvido à Itália pois apresentava falhas. Nem o jornalista nem a Corte estavam cientes do fato.
Em novembro, o MP italiano fez um novo pedido, que desta vez foi atendido. Porém, Godoy recebeu somente uma cópia do documento italiano e não foi informado pela Justiça brasileira do local onde deveria comparecer para depor. O depoimento de hoje só aconteceu porque o jornalista contatou diretamente o procurador italiano que lhe possibilitou fazer a videochamada de sua própria casa.
O jornalista pesquisa os atos de repressão cometidos pela ditadura brasileira e é autor do livro A Casa da Vovó, publicado pela Editora Alameda, uma “biografia” do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de inteligência do governo militar e palco de sessões de torturas contra opositores do regime. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti de 2015.