A carne de porco é mais consumida no mundo, hoje quase tanto quanto o frango, e na Argentina não para de ganhar lugar nos pratos e grelhas, à força do preço e qualidade. Mas o poder de compra rebaixado e os altos preços do milho e da soja empurram os pequenos produtores a abandonar a criação, enquanto os maiores sonham em exportar.
A febre pela carne de porco em outros cantos do planeta move as engrenagens do principal complexo exportador argentino. A farinha de soja produzida na Argentina tem como primeiro destino a União Europeia, principal vendedor de carne suína para a China, que também recebe quase todos os grãos de soja argentina para seus porcos. O país oriental não compra o que não lhe dá proveito a seu complexo de produção de óleo, que mói e mói o grão não apenas argentino, mas também brasileiro e estadounidense.
Transformar grãos em carne é a base desta complicada ida e vinda pela qual empresas e países colocam preços às necessidades alimentares humanas. Por isso qualquer consciência desprevenida que reconstrói este intrincado trajeto fica às portas de uma velha pergunta: e se ao invés de exportar o grão, seria mandar a carne?
“Quatro coisas são necessárias para produzir porcos: milho, soja, água e terra. A Argentina tem todas essas coisas”, diz o veterinário e consultor Jorge Brunori em Marcos Juárez, Córdoba, localidade histórica no assunto suíno. Sem a melodia de Córdoba, que segundo ele começa uns 60 quilômetros adiante do centro da província, aponta o problema do momento: “o preço da carne de porco não pode subir pelo poder aquisitivo das pessoas. Com a última desvalorização, aumentaram 20% os custos e o preço baixou 25%. A carne chega barata mas o produtor está derretendo”, diz, e se aventura numa saída: “com a quantidade de grãos que produzimos, que inclusive o Chile transforma em carne e exporta, é ridículo que não tenhamos consolidado o mercado de exportação. Seria os impostos aos grãos baixassem, a situação seria melhor”.
“Agora vão desaparecer os pequenos e médios criadores intensivos, não aquele que tinha 20 porcos no campo, que de tempos em tempos pariam. Sistemas eficientes, gente que investiu, porque se vende a 1050 pesos o quilo vivo e o custo está em 1350 pesos”, diz Ismael Dolso, consultor e veterinário de Río Cuarto. “Interessa à Argentina produzir carne suína? Queremos ser um país produtivo e converter grãos em carne?”, pergunta. Ex-produtor, agora contente, reclamando menos do seu trabalho de consultor, diz: “sempre somos moeda de troca. Para que os senadores de Tucumán votem a Lei de Bases, arranjam uma forma de exportar limões ao Brasil. Sejamos sinceros, o que interessa à Argentina é vender peças automotivas de Córdoba e Pacheco ao Brasil e que eles nos mandem os porcos”.
Porcos no cimento
Primeiro é preciso escolher o tipo de mãe e o garanhão. Existe a genética da carne mais gordurosa ou musculosa, outras que aguentam melhor o sol e o calor, outras que têm muitos filhos, e assim vai. Se escolher a equação de acordo com o que se tem, ou com o que se projeta desse cruzamento, que às vezes se faz por inseminação artificial, nascem leitõezinhos de 1,6 kg. Em menos de seis meses, as crias podem chegar a 120 quilos, mas nem todos os produtores se ocupam do processo inteiro.
Na gíria dos criadores de suínos argentinos, as fêmeas e machos grandes são chamados de “chefões”, e castrados desde o desmame. O valor do quilo de um chefão é a referência chave: da sua relação com o preço do milho e da soja se deduz como está a coisa. Os chefões entram no frigorífico e logo são pendurados em cabides, que passam ao depósito para se trasformar nos cortes, ou em salsichas – presunto e embutidos – que os frigoríficos produzem. Há também o curral de gestação, outro galpão onde os leitões vão parir e ficam até o desmame. Outro curral é o de criação, até certa idade, e finalmente há os currais de engorda.
Assim se organizam habitualmente os estabelecimentos de criação de suínos, hoje voltados, em sua maioria ao confinamento de animais. É preciso aproveitar cada metro quadrado. O galpão das mães para porcas grandes, separadas em seções, com um recipiente de alimentos que nunca se esvazia e água em bebedores sempre à disposição, possui dezenas ou centenas na mesma condição, segundo o tamanho do estabelecimento. O desmame natural que se dá aos três meses aqui acontece aos 21 dias. O risco de mortalidade é alto porque os leitõezinhos possuem poucas defesas do sistema imunológico. “Aí qualquer bactéria o derruba”, dirá um criador. As porcas terão dois partos e meio ao ano, entre oito e dez no total, até passar ao descarte.
Um porco de 120 quilos precisa de 0,85 metros quadrados para desenvolver-se, dizem os protocolos de bem-estar animal. O galpão de engorda tem os animais juntos, convertendo o que comem em músculo e tamanho. Todos cagam e mijam juntos: uma benção fertilizante que tem como resultado um problema, se não se reutiliza ou se trata com – caríssimos – biodigestores.
“Há tantas complexidades que a ecologia fica para depois. Em outros lugares do mundo colocam-se painéis solares e bonificam o produtor com menos impostos”, diz um produtor militante da engorda em confinamento. “É preciso um sincericídio: você quer um porco mais ecológico, então vale tanto. Os Estados precisam decidir o que é mais adequado. Se querem o porco feliz, coloquem dinheiro”, diz outro produtor, que prefere preservar seu nome. “Hoje tiramos a terra dos galpões para fazer os aterros e a bosta vai aí, mas tudo isso precisa de investimento”, acrescenta, para depois arrematar: “os créditos do Estado são chave para isso”.
Porcos nativos
A história argentina da criação de porcos é longa como atesta a centenária e hoje dominante empresa Paradini, da província argenitna de Santa Fé. Mas há um divisor de águas nos Anos 90. Até essa década, era a principal opção para quem vivia em zonas onde o cultivo de milho era preponderante. Córdoba, Buenos Aires e Santa Fe, nessa ordem, foram desde então as províncias com mais suínos.
Os porcos eram vendidos o ano todo à indústria de salsichas e sazonalmente como leitões. A este refrão se adiciona o valor do grão era efetivamente pequeno e no negócio era possível reinvestir em instalações que ainda estavam feitas para a criação e engorda de então: o porco criado no campo.
Quase no mesmo ano em que o mercado monopolizado de Liniers deixou de receber porcos, começou a implementar-se nos frigoríficos com um sistema eletrônico de medição da relação massa/músculo nos porcos, que aponta para estabelecer o quão magras são essas carnes. O que antes se fazia a olho de um inspetor da Junta Nacional de Carnes, agora com sua precisão empurrava ao melhoramento genético e da alimentação dos animais para não ficarem fora de um mercado que começava a exigir carnes menos gordurosas: os fris já não eram a única medida das coisas. Enquanto apareciam os primeiros açougues de porcos, uns 35% do consumo interno de carne suína se importava do Brasil.
O tempo está a favor dos grandões
No século XXI a mudança é retumbante. Se passa de seis a 16 quilos por habitante/ ano hoje consumidos e se reverte a relação: agora são 70/30 entre carne e frios. Os comoditizados preços do milho e da soja fazem oscilar a estrutura dos custos – uns 70% do custo da produção sem nada – assim como o preço da terra, que se multiplica. E com o confinamento é uma forma de aproveitar a fundo o metro quadrado do campo e os currais segmentam os períodos produtivos, que alguns integram e outros resolvem associando-se. Uma incubadora de 150 mães que ocupava 10 hectares confinadas, agora ocupa um.
Os investimentos em novas instalações estão por volta de 8 mil dólares por cada mãe. O retorno do negócio suíno realmente existente não dá para tudo isso, e quem apenas se dedica a isso vai ficando para trás, enquanto alguns atores ganham tamanho graças à aparição de investidores, empresas de grãos que se diversificam e/ou industriais que disputam o mercado. Passamos agora para o que todos sabem: “este é um negócio de escala”.
“Pergunte a um produtor que tinha cinquenta porcas por campo e passou ao confinado se não voltaria novamente ao sistema ao ar livre. Ele dirá a você que de jeito nenhum”, mete a colher Dolso. O problema é que a unidade de produção que permite a uma família viver cada vez deve ser maior: o negócio de escala se traduz em menos gente vivendo no campo.
“É provável que dentro de dez anos uma pequena fazenda tenha 200 mães, não 50 como é hoje. Quer dizer que os pequenos e médios precisam buscar uma nova escala via investimento ou associação”, diz Brunori. Dolso tira cifras mais complicadas: “há vinte anos, com 150 mães, sem mais nada, você vivia bem. Hoje a unidade produtiva está em 500 mães intensivas”. É que, em seu cálculo, o criadouro precisa se sustentar com sua própria produção para que não somente os proprietários de terra possam produzir porcos.
“O nível de desaparecimento de produtores de suínos é traiçoeiro. Na minha cidade, há cinco anos, éramos 18 produtores de suínos, hoje ficamos três”, diz Pablo Pailolle em Camilo Aldao, sul de Córdoba, centro histórico da produção de suínos. Junto a seu irmão, possui 60 hectares onde fazem milho e soja, e possui umas 100 mães, mas hoje não dão conta. Membro da Federação de Cooperativas Federadas (Fecofe), e da Mesa Agroalimentar Argentina, defende uma produção mista, que confina e mantenha seus porcos nos campos. “Os grandes sabem disso, mas hoje perdem, outra estrutura financia isso, quem pode absorver perdas sabendo que o jogo vira e pode ter um ano de bons preços para se recuperar”, diz.
Do chefão à carne
No Frigorífico Regional Saladillo trabalham umas 250 pessoas. Em 2020 mudou de dono e deixou a vaca para especializar-se em porcos. Desde então, trabalham associados à Cabaña Argentina (Pacuca), que fornece a maior parte dos porcos que ali são trabalhados. Saem caminhões frigoríficos com cortes, frios ou carne para churrasco, principalmente a supermercados, ou a algum de seus cinco açougues de porcos que vendem direto ao público. Chegam em caminhões com porcos de engorda, que estão um dia em um curral de descanso e no dia seguinte vão em grupinhos ao matadouro. Os “chefões” ingressam um a um ao box. Ali os espera o funcionário que os molha e lhes dá uma descarga elétrica deixando o animal inconsciente. Os 120 quilos caem por uma comporta que se abre. Abaixo, o degolador, primeiro, enfia uma faca que abre a pele e depois corta a jugular, como indicam as normas de biossegurança.
O índice de vocalização mede quantos, a cada 100 porcos, gritam antes de serem abatidos. Os frigoríficos trabalham para diminuir a gritaria nas comportas do matadouro e cumprir as demandas de bem-estar animal. “O funcionário sempre fica mais ansioso quando o porco grita, é um aviso que está fazendo a você. Bem ou mal, a pessoa que faz o abate está acostumada”, diz Andrés, experiente abatedor, que valoriza os esforços para que o animal sofra o menos possível: “antes, somente atavam as patas e faziam a degola com ele pendurado, sabe como gritava?”, recorda.
O porco recém morto, ainda com espasmos nervosos, é amarrado e pendurado pela pata para que siga seu caminho industrial. Tiram dele as vísceras, analisam um pedacinho de sua carne em laboratórios para descartar doenças, e o corpo segue sem pausa rumo a um local onde ele será deixado sem pelos. Outros homens com facas revisam para deixar limpo o animal, já praticamente convertido em res, quando uma serra o divide em dois. A coreografia segue em uma sala de uns 40 metros quadrados onde trabalham a toda velocidade cerca de 60 homens. As carnes entram nas salas de refrigeração e caem sobre a mesa onde facas e serrinhas elétricas separam primeiro as patinhas e as mãos – o único exportável –, logo o presunto, de onde sairão os cortes para a milanesa, e o resto que há algumas décadas passou a ser usado nos churrascos argentinos. Cada operário faz a sua parte com toda a rapidez e passa ao próximo companheiro. Em uma sala contígua, seguem seu curso de cortes e recortes, que logo serão embutidos, resfriados ou secos.
Ranking e concentração
A magnitude de cada unidade produtiva no campo se mede pelas mães. Menos de dez se assinala como produção familiar. Consultores e profissionais costumam deixar de fora esta escala de produção pela sua ineficiência. Mas não há naquelas famílias apenas produções alternativas, que possuem valor em si, há também vidas rurais que escapam ao cálculo empresarial. Esta realidade que vai desaparecendo ainda é majoritária: são mais da metade do milhão de mães que existem na Argentina. “As autoridades dizem que há um milhão, mas as produtivas são 400 mil mães”, esclarece Brunori.
Um produtor de 50 mães hoje é considerado pequeno. Daí a 500 estão os medianos. Acima de 500 são os grandes. Na Argentina existem fazendas de até 15 mil mães. O ranking dos produtores, aqueles que não deve ser confundidos com os que fazem o trabalho industrial – dos frigoríficos –, podem ser resumidos assim: Isowean, em Córdoba, é o maior, hoje com 15 mil mães e prioriza a criação. Paladini, perto de San Nicolás, tem 12 mil mães, integrando todo o circuito do campo à comercialização. A Piamontesa (Averaldo Giacosa & Cia), que comprou há um tempo o Campo Austral, com suas 8 mil mães, está integrada também, como Cabaña Argentina (Pacuca), de 7 mil mães. Convém olhar para este ranking junto aos frigoríficos.
Em 2023, Paladini liderou com 447 mil cabeças abatidas; La Pompeya (Marcos Paz, Buenos Aires) teve 310 mil; Ceryvac (Virrey del Pino), 220 mil; Cabaña Argentina (que hoje abate no Frigorífico Regional Saladillo), com 210 mil; e La Piamontesa, com 189 mil.
“Não está nem atomizado, como o mercado da carne bovina, nem concentrado, como o dos frangos. O ideal para qualquer economista. Todas são pequenas e médias empresas, na criação e na indústria”, diz Daniel Fenoglio, hoje à frente da Associação de Produtores de Suínos e presidente da Cabaña Argentina, quarta criadora em importância e comercializadora de carnes suínas, do Grupo Blaquier.
Na Argentina, a concentração não é tão alta quanto no Chile, onde as cinco maiores empresas representam 90% da oferta, nem como o Brasil ou México, onde as cinco grandes oferecem quase a metade. Sobre os 8 milhões de cabeças abatidas em 2023, os dez principais grupos dedicados aos suínas na Argentina abateram quase 30% do total.
É para lá que estamos indo, porque o negócio de escala vai concentrando a coisa, pura mecânica cega do capital.
Um cubano em quilômetros
Victor Pileta dirige um projeto produtivo de La Dignidade Rural em Virrey del Pino, La Matanza, à altura da Mercedes Benz mas ao fundo, uns 10 hectares que alugam com a organização. Caminhamos por entre milhos amarelados de fins de outono. Seus leitõezinhos estão aprendendo a respeitar os fios eletrificados que dividem o campo. Vitico traz um número: “se o quilo está em mil pesos, dez mães ao ano dão dez milhões de pesos. Os convencionais gastam mais da metade em alimentos. Com meu método, gasto a metade que esses loucos”, diz com um sotaque de sua Cuba natal intacto.
“Hoje se não é em pastoreio, nem tente. Com estes custos, a grande oportunidade que vejo, eu que sou agrônomo e não veterinário, é plantar”, diz e explica que aplica o pastoreio racional Voisin, um método para que os animais pastoreiem em quadrantes diferentes e rodam para otimizar os rendimentos. “Isto é o que desenhei aqui, estudei, vi os tempos das ervas daninhas. Como esta terra vermelha, ou alaranjada. Isto é comida de cosmonauta, tem todos os aminoácidos essenciais, chefe”, diz enquanto espalha na palma de sua mão grãos dessa planta silvestre, que facilmente se estende na região para o desgosto de agricultores convencionais da região.
Meu projeto original era ir a 50 mães e me dedicar somente à reprodução. O projeto estava a ponto de sair e congelou tudo. Agora tenho oito e vou baixar para cinco porque não dá, está muito baixo o preço”, diz e tira do forno a carne de um porco que há pouco pastoreou por ali. “O animal que estou dando a você não tem preço: sem sofrimento, sem antibiótico. Não gosto de confinar os animais, mas agora a conta não fecha. Um Auschwitz em galinhas, um em vacas, um em porco… todo esse sofrimento passa a você, de alguma maneira chega”. Enquanto ficam só os ossos sobre o prato, acrescenta: “Os animais de cativeiro duram cinco anos. No pastoreio até 15. Eu não digo que é uma criação, isto é um spa”.
Médios
“Estamos entrando no negócio quando muita gente está saindo. Temos mais gordura para queima nesta etapa que é muito ruim. Queremos chegar a 3 mil mães. Produzimos milho, soja, temos um criadouro e nos associamos com o frigorífico… Acreditamos que vai ser rentável, não é uma loucura, mas rentável”, diz Martín Guaita, comerciante de frutas e verduras que faz um tempo que aposta no porco. Dois criadores em curral na Província de Buenos Aires de 300 e 250 mães são o início da sua aposta que, como todas, compete com a potência verdeamarela. No país vizinho, acontecem duas coisas relevantes. Por um lado, eles não dão valor ao que damos a “bondiola” (corte conhecido na Argentina” e, portanto, não tem problema em vender a carne barata, porque é algo que daquele lado não se aproveita tanto. Por outro lado, a ractopamina, um hormônio que dão aos porcos e permite que o animal engorde em menos tempo, aqui é proibido. É um anabolizante que aumenta a capacidade de retenção da água dos músculos, mas deixa resíduo na carne. “Nos proíbem de usar o hormônio mas deixam entrar a carne com hormônio”, assinala Guaita. O Pessoal da Secretaria de Bioeconomia mede a quantidade que traz a carne do Brasil. “A metade vem com níveis altos e a metade com níveis aceitáveis”, diz um conhecedor do assunto, que acrescenta: “160 países do mundo não compram de países que usam esse hormônio”.
Exportação
A representação sindical dos produtores aposta para que o quilo vivo suba e que as cadeias de supermercados e açougues abandonem um costume: tirar maior rentabilidade do porco do que da vaca, para recuperar com um o que o outro não dá. Outro ponto de equilíbrio seria a saída exportadora: “a Argentina está destinada a ser, depois do Brasil, o maior produtor do mundo. O hemisfério norte está decrescendo em sua produção por pressão dos partidos verdes, animalistas… e não possuem grãos e água, como nós temos”, diz Fenoglio, que também aponta os desafios da abertura de mercados e a infraestrutura dos frigoríficos.
O único ano desde 1992 em que a exportação do porco (41 mil toneladas) superou a importação foi 2020. Em todos os demais anos a importação ganhou da exportação. Este 2024, começou com a importação resolvida pela queda no consumo, e o preço local também entrou em colapso com a volta à fase da carne brazuca. Que a carne de vaca se exporte e o porco ocupe seu lugar é o plano de convergência entre os grandes negócios da carne.
Pouco antes da pandemia, também chegaram notícias da China: a imprensa de Biogénesis Bagó, de Hugo Sigman, difundiu que pelas proximidade com os principais produtores de suíno desse país “surgiu a possibilidade de se trabalhar em uma associação binacional para passar de uma produção de seis a 100 milhões de porcos em um período de cinco a oito anos”.
A Peste Suína Africana havia obrigado a sacrificar mais de 200 milhões de porcos naquele país e a redução da oferta dessa carne era assunto de segurança nacional. Isto em paralelo com vários projetos de fazendas verticais na própria China: edifícios de 26 andares para a criação de porcos, que fecharam a janela de oportunidade para abastecer aquele imenso mercado em uma velocidade maior que o que se imaginava.
O projeto, lembrado hoje como o das megafazendas, foi cancelado quando os empresários chineses concluíram que não éramos um país amistoso para isso, pelo ativismo ambientalista, que denunciou sua megalomania que implicava multiplicar plantas e infraestruturas sem medir o impacto de tamanha transformação. “Depois que a China resolveu seu problema, essas fazendas teriam conquistado todo o mercado interno”, confessa um colaborador.
“Para mim essa possibilidade segue latente. Com os chineses ou com algum outro país do mundo. A União Europeia começou a se retirar do mercado da carne. Essa produção vai se mudar para a América Latina”, diz Brunori.
Sul de Córdoba e além
Reducción e Paso del Durazno são algumas das localidades do oeste riocuartense, principal provedor de porco do velho Mercado de Liniers, onde predomina o milho. Hoje os campos se alugam a Aceitera General Deheza – que também cria milhares de porcos por espaço – e outros centros de semeadura, porque aqui, ao invés de agregar valor aos grãos, os porcos implicam perdê-lo. Os campos de amendoim e as pequenas fazendas de porco eram o habitual por estes lados. Por aqui ainda anda Olega, uma das grandes, mas cada vez mais essa oleaginosa foi se plantando até o sul, chegando a Buenos Aires.
Pela Rota 8, a bordo de sua F100, dirige Claudio Demo, engenheiro agrônomo, docente da Universidade de Río Cuarto, e criador de porcos no campo em hectares que tem com sua família em Reducción, que até 1985 eram fazendas leiteiras e se converteram em pecuária e agricultura. Todas às terças-feiras, Claudio engancha em seu veículo de transporte os porcos que vão a fazenda e terminam no açougue da cooperativa Cooperchc, que em Rio Cuarto vende carne e embutidos. “Eu recupero os restolhos. Ao menos 50% dos porcos que se produzem no país deveriam ser provenientes de resíduos da indústria de restolhos, do não digerido, os confinamentos ou do amendoim”, diz enquanto solta porcos no quadrante do campo onde ontem pastavam vacas, para que comam a bosta com os grãos de milho que não digeriram. “O problema da eficiência precisa ser olhado integralmente. A armadilha é que há um custo que produção empresarial acrescenta à sociedade. É o que custa ambientalmente na forma de produzir porcos confinados. Em meu sistema tudo se aproveita e os dejetos abonam a terra”, diz Demo, que lança números: “Você tem 300 mil hectares na Argentina, multiplique por 100 quilos de porco: olha quanto alimento gratis se tem”.
Seus porquinhos comeram restolhos de milho pela manhã e agora dormem à sombra. Finalizar com milho é a fórmula de Demo, que convida a conhecer os criadores tradicionais da zona. “Na Argentina, nunca se viveu da criação de porcos”, diz Daniel.
“Com Lanusse, caminharam os pequenos e os grandes porque duas vez por semana se proibia a venda de carne de vaca, que tinham que exportar, e seguimos assim até que não deu mais”, diz Victor, que mostra as instalações que pôde montar nos anos oitenta, quando a coisa ainda andava e o confinado era o rumo que vinha do velho continente.
“Eu sustento que assim deveriam ser todos os criadouros, porque as pessoas que vivem aqui, cuidam dos animais”, diz Demo.
“Mas Claudio, lamentavelmente vamos morrendo” – responde Victor, que nomeia a um punhado de famílias gringas: todas passaram ao plantio ou alugaram seus terrenos e se mudaram para a cidade.
“Uns vizinhos criam porcos atrás de um confinamento e engordam um capão a cada quatro novilhos. Na Argentina se engordam 16 milhões de vacas em confinamento. Você tem pelo menos 4 milhões de porcos que poderiam se alimentar de milho que não digerem os novilhos”, faz as contas Demo, que vê o futuro numa produção que, molecularmente, abasteça e persiga a ciência e a produtividade mas a partir de perspectivas mais complexas do que receita a curto prazo.
(*) Reportagem publicada originalmente em Revista Crisis.
(*) Tradução de Raquel Foresti.