Em 2017 viajei para a Venezuela para cobrir as eleições regionais daquele ano. Era a primeira eleição no país após a crise com a Assembleia Nacional, que nas eleições de 2015 elegeu uma maioria opositora. Em 2017, frente a um parlamento que efetivamente trabalhava como um poder insurgente contra o governo, foi convocada a eleição de uma Assembleia Constituinte, que votaria uma nova Constituição e substituiria a Assembleia Nacional “rebelde”. Como a oposição boicotou esse processo, o governo conseguiu uma ampla maioria. Quando fui para a Venezuela, essas eleições já haviam passado, mas se realizariam as eleições regionais, nas quais se elegeriam os governadores dos 23 estados venezuelanos. Dado o contexto, era esperado que houvesse protestos e violência, e era isso, especialmente, que eu queria cobrir.
Nas semanas anteriores à eleição, conversamos com uma série de pessoas, realizamos entrevistas e viajamos o país tentando entender melhor o clima político e o legado que os últimos anos de luta entre Poderes e protestos violentos tinha deixado na Venezuela. Um dos locais que visitamos foi o centro cultural Otro Beta, na cidade de Maracay.
Criado em 2011, o Otro Beta é um coletivo cultural. Anualmente, ele realizava um festival musical que chegou a atingir o público de 50 mil pessoas. O coletivo também tinha um espaço na cidade, onde havia um estúdio de gravação para artistas independentes e eram realizados shows. Havia também um restaurante e um bar, que ajudavam a financiar o coletivo e os artistas que dele participavam. No dia 24 de junho de 2017, esse espaço foi atacado durante uma manifestação opositora, incendiado e destruído. Pouco antes do ataque, Ysbel Mejias, professora universitária e membro do coletivo, estava dentro da sede com seu marido e sua filha criança, mas a família deixou o espaço. Um outro membro do coletivo ficou lá, de guarda, e quando os manifestantes entraram, quebrando tudo e ateando fogo ao espaço, ele escapou por pouco, saindo pelo banheiro da parte de trás do edifício. Quando entrevistava Ysbel em meio às ruínas do espaço, tudo o que pensava é no que poderia ter ocorrido caso ela, o companheiro e a filha não tivessem ido embora pouco antes.
Em 2017, se contava em 126 o número de mortos durante as manifestações na Venezuela. 14 mortes foram causadas pelas autoridades; 23 pela oposição; 8 morreram por conta das barricadas erguidas durante as manifestações (principalmente em acidentes de trânsito); 3 foram mortas por civis pró-governo; 14 em meio a saques; 3 foram mortos acidentalmente e outras 61 não tiveram suas razões identificadas. Até o opositor Leopoldo López reconhecia à época que as mortes nas manifestações não haviam ocorrido só de um lado.
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Atos de invasão e queima de espaços como o Otro Beta ocorreram em todo o país, especialmente contra sedes do Partido Socialista Unido da Venezuela, o PSUV: à época contei casos em Tovar, Bolívar e Lechéria. As manifestações foram convocadas pela coalizão oposicionista Mesa de la Unidad Democrática (MUD), incluindo a que terminou com a queima do Otro Beta.
É possível criticar Maduro em vários campos. Mas é indispensável não ignorar o contexto em que governou nos últimos anos: sob sanções e ações militares apoiadas pelos EUA e Colômbia, sob tentativas de golpes e atentados (lembrem-se de Óscar Perez, o policial que roubou um helicóptero e jogou granadas no Tribunal Supremo em 2017, e que então foi comemorado por Eduardo Bolsonaro, bem antes da eleição de seu pai e do 8 de janeiro), e frente uma oposição intransigente, golpista e bastante disposta à violência. Não é nem um pouco absurdo supor que, a depender do resultados neste domingo, haja um banho de sangue.
Felizmente, as eleições que fui cobrir passaram sem violência. O Gran Polo Patriótico, coalizão governista, conquistou 18 estados. A MUD, que se dividiu entre os que aceitaram participar daquelas eleições e os que insistiam na posição de boicote, conseguiu cinco – incluindo estados importantes como Mérida, Táchira e Zulia. A minha pauta central caiu. E o Otro Beta realizou seu festival naquele ano com o mote “Fênix: renascer das cinzas”.
(*) Pedro Marin é editor-chefe da Revista Opera e editor de Opinião de Opera Mundi. É autor de Aproximações sucessivas – o Partido Fardado nos governos Bolsonaro e Lula III (Escritos: 2019-2023).