Há 37 anos, em 13 de setembro de 1987, Goiânia vivenciava o mais grave acidente radiológico ocorrido no Brasil — e o maior episódio de contaminação radioativa fora de usinas nucleares já registrado na história. A abertura de uma cápsula contendo césio-137 causou várias mortes e afetou milhares de pessoas.
O tratamento médico das vítimas representou um enorme desafio para o Brasil — à época, desprovido até mesmo de protocolos para esse tipo de atendimento. Uma generosa oferta de ajuda seria feita pelo governo cubano: em 1992, por iniciativa de Fidel Castro, dezenas de pacientes brasileiros passaram meses em Cuba recebendo atendimento médico gratuito de especialistas em contaminação radioativa.
O acidente derivou do descarte inadequado de um equipamento médico pertencente ao Instituto Goiano de Radioterapia (IGR) — uma organização privada localizada no centro de Goiânia. O IGR havia recebido a permissão para construir sua sede em um terreno da Sociedade de São Vicente de Paula, mantenedora da Santa Casa de Misericórdia. Em troca, o IGR se comprometia a realizar exames radiológicos gratuitos para os pacientes da instituição. Em 1984, entretanto, o IGR deixou de cumprir sua parte no acordo. A sociedade beneficente entrou então com uma ação de despejo, levando o instituto a encerrar as atividades no endereço em 1985.
O terreno foi vendido para uma autarquia estadual, que iniciou a demolição das antigas estruturas do IGR. Uma liminar suspendeu a demolição e o prédio permaneceu abandonado por quase dois anos. O IGR não se preocupou em retirar os equipamentos médicos que estavam no interior do prédio abandonado nesse período. E os novos proprietários do terreno não tomaram o cuidado de fiscalizar ou impedir o acesso de pessoas não autorizadas no local.
Em 13 de setembro de 1987, Roberto dos Santos Alves e Wagner Mota Pereira, dois catadores de materiais recicláveis, entraram no prédio em busca de itens que pudessem ser reaproveitados. Entre as ruínas, eles encontraram um aparelho de radioterapia. Procurando componentes de valor, os catadores iniciaram o desmonte do equipamento. Cinco dias depois, os dois homens venderam a máquina para Devair Alves Ferreira, proprietário de um ferro-velho na região.
Ao terminar de desmontar a máquina, Devair encontrou uma cápsula de chumbo. Visando reaproveitar o metal, o homem abriu a cápsula e se deparou com um conteúdo intrigante: 19 gramas de cloreto de césio-137 — um material altamente radioativo, sob a forma de um sal que emite um forte brilho azul em ambientes escuros.
Devair se encantou com o brilho emitido pela substância. Ele levou o sal para sua casa e o mostrou para sua esposa, Maria Gabriela. Chamou ainda o irmão, Ivo Ferreira, que decidiu levar um pouco da substância para sua filha pequena, Leide das Neves. Ao longo de vários dias, Devair levou parentes, amigos, vizinhos e clientes do seu ferro-velho para ver de perto a substância luminosa.
As pessoas expostas ao césio logo começaram a passar mal. Apresentando sintomas como náusea, vômito, tontura e diarreia, as vítimas procuraram ajuda médica. A princípio, os médicos acreditavam que os sintomas eram decorrentes de uma intoxicação alimentar ou algum surto de uma doença contagiosa. Maria Gabriela, no entanto, começou a suspeitar de que o mal estar poderia estar relacionado à substância que o marido trouxera para casa. Auxiliada por um funcionário do ferro-velho, ela levou o césio em um saco plástico até uma unidade da Vigilância Sanitária.
Os funcionários da Vigilância solicitaram que o físico Walter Mendes Ferreira avaliasse o pó entregue por Maria Gabriela. Utilizando dois aparelhos detectores, Walter confirmou que a substância era radioativa. As autoridades sanitárias lançaram um alerta de contaminação e acionaram a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que iniciou os procedimentos para contenção de danos.
Os técnicos do CNEN buscaram identificar as regiões da cidade que tinham sido afetadas pela contaminação. Toda a população residente no perímetro de risco teria de ser avaliada. O Estádio Olímpico, localizado na região central de Goiânia, foi reservado para essa operação.
Ao todo, 112.800 pessoas foram testadas. Destas, cerca de 1.000 apresentaram indícios leves de exposição ao césio — revertidos a tempo pelas ações emergenciais. Outras 129 pessoas apresentaram um grau mais severo de contaminação. Destas, 49 tiveram de ser internadas e outras 21 foram submetidas a tratamento intensivo.
A primeira vítima a falecer em decorrência do acidente radiológico foi Maria Gabriela, a esposa de Devair. Ela morreu no dia 23 de outubro, aos 37 anos, após desenvolver um grave quadro de hemorragia interna. Sua sobrinha, Leide das Neves, de apenas 6 anos, morreu nesse mesmo dia. Leide havia ingerido césio, brincando com a substância enquanto comia ovo cozido.
Dois funcionários do ferro-velho de Devair, Israel Baptista dos Santos, de 22 anos, e Admilson Alves de Souza, de 18 anos, faleceram respectivamente em 27 e 28 de outubro. Ambos haviam ajudado Devair a desmontar o aparelho de radioterapia.
Devair sofreu perda de cabelo e desenvolveu uma série de problemas de saúde. Ele faleceu vitimado por um câncer sete anos após o acidente, em 1994. Seu irmão, Ivo Ferreira, morreu de enfisema pulmonar em 2003. A Associação das Vítimas do Césio-137 afirma que, até o ano de 2012, 104 pessoas haviam morrido em decorrência da contaminação, sobretudo de câncer, problemas renais e pulmonares. Outras 1.600 pessoas desenvolveram problemas de saúde derivados da exposição ao material radioativo
A contaminação causada pelo acidente foi extensa, afetando várias áreas de Goiânia. Ruas e bairros precisaram ser isolados e desocupados. Várias casas tiveram de ser demolidas, com todos os móveis e objetos em seu interior. Aproximadamente 13,4 toneladas de resíduos radioativos foram removidas da cidade. O lixo atômico foi armazenado no Parque Estadual Telma Ortegal, em Abadia de Goiás, isolado por uma parede de concreto e chumbo, com um metro de espessura, e soterrado sob uma colina artificial.
Embora a ação rápida dos funcionários da CNEN tenha impedido que o problema se alastrasse ainda mais, a condução da crise pelos gestores públicos foi lastimável. O gabinete de José Sarney — que no ano anterior havia tentado adquirir alimentos contaminados por radiação para distribuir em programas assistenciais — praticamente ignorou o acidente. O governador de Goiás, Henrique Santillo, minimizou a gravidade do ocorrido. Com medo de afastar os turistas que estavam em Goiânia para assistir ao GP Internacional de Motovelocidade, as autoridades locais mentiram deliberadamente para a população, afirmando que ocorrera um mero “vazamento de gás”.
A assistência médica ofertada aos contaminados também foi insatisfatória. O Sistema Único de Saúde (SUS) ainda estava sendo formulado e a rede assistencial local não tinha informações precisas sobre os protocolos para contaminação radiológica, deixando muitos dos afetados sem tratamento.
Comovido pela tragédia, o governo cubano despachou o biofísico Omar Garcia, do Centro de Proteção Radiológica de Cuba, para acompanhar o atendimento às vítimas em Goiânia. O governo cubano já possuía larga experiência no tratamento de afetados por contaminação radioativa, pois havia atendido milhares de crianças ucranianas atingidas pelo acidente nuclear de Chernobyl em abril de 1986.
Em 1992, durante a viagem que fez ao Rio de Janeiro para participar da ECO-92, o presidente cubano Fidel Castro procurou Terezinha Nunes Fabiano, presidente da Associação das Vítimas, e ofereceu atendimento médico para os afetados pela contaminação radioativa em Cuba. Terezinha aceitou, esperançosa com a possibilidade de tratamento: “Quando Fidel levantou a minha filha, Natasha, e lhe deu um beijo, me dei conta de quanta bondade tinha em seu olhar e confiei mais que nunca”, afirmou posteriormente em uma entrevista.
O tratamento foi gratuito. Dezenas de pacientes brasileiros foram integrados ao programa especial de acompanhamento de vítimas de acidentes radioativos e ficaram por quatro meses internados em hospitais e clínicas especializadas de Havana. As famílias dos pacientes ficaram hospedadas em chalés no Acampamento de Pioneiros José Martí. No retorno ao Brasil, os pacientes foram acompanhados por uma delegação de especialistas cubanos, que repassaram às autoridades brasileiras as conclusões diagnósticas, recomendações médicas e os exames e laudos produzidos durante o tratamento em Cuba.